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Críticas

Cineplayers

De vícios e ausências

8,0

Maíra Buhler não é inexperiente quanto ao mecanismo com o qual trabalha em Diz a Ela que me Viu Chorar. A cineasta já esteve pilotando um documentário de resultados imprevisíveis antes, onde adotou uma proposta que consistia em retirar a zona de conforto do público, com a A Vida Secreta dos Hipopótamos, em parceria com Matias Mariani. Tanto lá quanto em seu novo filme, o espectador é atirado em uma narrativa imprevisível quanto aos espaços, as reações, os andamentos, portanto deixando a previsibilidade do lado de fora da equação, e jogando com as situações sempre em camadas, onde cada novo dado revela cada vez mais sobre o microcosmos lançado, ressignificando gradativamente não apenas o lugar e os personagens, mas a própria reação do espectador aos eventos mostrados, como um quebra-cabeça onde o todo da imagem só pode ser revelado com cada peça em seu lugar.

O lugar em questão é um hotel social na cidade de São Paulo, que fez parte de um programa da gestão do prefeito Fernando Haddad para reintegração à sociedade de dependentes químicos e alcoólicos, principalmente os ligados ao consumo do crack. Esses espaços eram geridos pelo governo e funcionavam com assistência aos moradores de cada lugar, contando com enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais e eram um impulso para que essas pessoas tivessem de fato uma nova chance de oportunidade na vida, motivando-as a estabelecer metas e percebendo-se capazes de evoluir. Com essa grade narrativa para trabalhar, Maíra nos apresenta sua gama de personagens, extensa em número e em situações que os apresentarão, sem pressão de correr sua duração. Em concisos 85 minutos, o filme aparenta vender um processo de expiação de vícios e decadências que só existe até certo ponto. Os interesses de Diz a Ela que me Viu Chorar são muito mais intrínsecos, humanos e naturais do que suponhamos pela apresentação, e isso é um dos pontos positivos do longa.

Não há julgamentos em cena. Não há dedos apontados, nem acusações justas ou injustas, por parte da realização. Isso não impede o filme de incorrer em uma ou outra cena mais perigosa do ponto de vista da responsabilidade, tanto física quanto emocional, em como o filme influencia ou deixa se influenciar atitudes e ações, se expondo quando não deve ou se privando de se expor quando deve, além de alterar uma rotina sem deixar claro da qualidade daquela influência, ainda que apenas imagética. É uma posição arriscada para se tomar em projetos como esse, documentários onde um elemento externo resolve filmar de maneira observatória um espaço/pessoa/situação. Inúmeros filmes já caíram ou rasparam nesse lugar, e muitos ainda o farão, ninguém é perfeito. Felizmente no lugar de Maíra foi um esbarrão que pisca em poucas cenas, sem nunca deixar de reverberar a potência dramática que ela empreende e as imagens poderosas que ela capta, filtrando o vício para tratar de todos os tipos de abandono, com foco especial no emocional.

Cada um que passa pelas lentes da diretoras irá explicitar sua solidão, sua carência afetiva, seu desamparo social e sua zona perdida de afetos, em um punhado de sequências tão doloridas quanto inesquecíveis. Ainda que essas dores tenham eclodido com o advento da dependência química, a impressão que Maíra quer levantar é a da similaridade daquelas relações humanas com as ausências de qualquer outro ser humano. Paixões literalmente arrebatadoras, traições, ciúmes, abandono parental, depressão, desemprego, violência doméstica, melancolia e auto estima em queda vertiginosa, conhecemos muitos dos lugares onde esses personagens habitam, ainda que a válvula de detonação mostrada no filme seja de natureza entorpecente. Ao analisar friamente cada um daqueles quereres, é fácil se perceber próximo àquelas lágrimas que insistem em se fazer presentes.

Quanto as decisões artísticas especificamente, a maior parte é uma simbiose qualitativa entre direção, fotografia e montagem, como por exemplo o longo diálogo telefônico, indo da raiva, ao choro, aos pedidos de perdão, até culminar de maneira surpreendente. Os planos conseguidos no terraço do prédio no geral são todos de extrema delicadeza em seu naturalismo, e a forma como o filme busca o olhar de cada um deles, mesmo os que fogem dessa capacidade de confrontar-se, uma reprodução por fora do espelho mas que os obriga a uma reflexão nem sempre desejada. Ao menos uma sequência conseguida por acaso nasce impactante, que é o diálogo entre Andrea e uma personagem televisiva vivida por Giovana Lancelotti, ao captar na telenovela uma coincidência que ela aplica a si mesma, com resultado desconcertante. Ainda que a bordo das sombrias asas da dependência, o que Maíra Buhler faz aqui é nos aproximar das falências emocionais de pessoas tão aparentemente diferentes de nós, pra mostrar que nós separamos dela por algumas pedras - as dores de ausências muitas vezes serão as mesmas. 


Filme visto no Olhar de Cinema de Curitiba

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