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Doce Vida, A

(Dolce vita, La, 1960)
8,0
Média
328 votos
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Críticas

Cineplayers

A cidade de Fellini

10,0

A Roma de Federico Fellini é como um panorama. Em A Doce Vida (La Dolce Vita, 1960), ela é uma set piece majestosa tanto como palco para sucessivas e complexas execuções de cena quanto como uma visualidade esplendorosa na arquitetura do cenário que se desdobra a partir do movimento. Não é a Roma neorrealista do cinema italiano da década de 1940, mas uma cidade-pintura – imaginada na perspectiva de uma elite ociosa que atravessa suas ruas de carro cantarolando músicas americanas, habitam suas casas de dança e mergulham em suas fontes.

A organização de A Doce Vida é a dessa cidade como palco. Acompanhamos uma semana na vida do fotógrafo paparazzi Marcello (Marcello Mastroianni) enquanto ele circula entre diferentes eventos urbanos: da visita de uma celebridade até o aparecimento de Nossa Senhora. A unidade do filme se dá em sua visualidade – ou na reflexão que exerce da produção midiática como uma produção do visível. Marcello, sendo fotógrafo, é uma figura da visão; sendo paparazzi, é representante de uma configuração muito específica da visibilidade, em que certo modo de olhar é dirigido a um mundo social que aprendeu a depender desse olhar e a ser visto, portanto, de certa forma.

Fellini é hoje uma peça chave daquilo que entendemos por cinema italiano e também da identidade fílmica do país. Alguns diretores posteriores a ele são frequentemente associados a seu cinema, como Ettore Scola (discípulo declarado do cineasta) e Paolo Sorrentino. E A Doce Vida é uma das obras que definem o seu cinema: um mosaico afetivo da vida urbana italiana, das relações interpessoais da Itália moderna e um estudo de classe das frivolidades ansiosas da alta sociedade em Roma.

A Doce Vida é também um espelho invertido do filme anterior de Fellini, Noites de Cabíria (Le Notti di Cabiria, 1957). É um retrato da alta-roda que Cabíria eventualmente visita como prostituta, uma personagem deslocada desse circuito social. Os personagens de A Doce Vida, ao contrário, estão muito à vontade nessa cidade que se abre para os seus deleites e suas crises. É interessante notar alguns aspectos da experiência romana que estão presentes nos dois filmes, mas enquadrados de modos diferentes. Primeiramente, a questão da religiosidade: em Cabíria, estamos imersos em uma cultura da devoção, ela nos afeta em sua sensibilidade, caminhamos junto com a protagonista por uma procissão e rezamos com ela para a Madonna; em A Doce Vida, somos convidados a observar de longe, com ironia, uma massa indiferenciada agindo do mesmo modo de Cabíria, mas já não somos parte dessa massa, e sim do olhar midiático que se dirige a ela. Além disso, há a magia como oposição ao realismo: no primeiro filme, a protagonista se deixa hipnotizar em um show de teatro, e a configuração da cena muda quando Cabíria parece flutuar brevemente na imagem fílmica – o aspecto onírico da cena é possibilitado por esse lugar do espetáculo teatral, do palco, da hipnose. Mas o sonho já é uma experiência mais permanente e lúcida em A Doce Vida. Na sequência da festa no palácio, percebemos como essa qualidade mágica faz parte do próprio cotidiano daquelas pessoas, habitantes do devaneio que é apenas momentâneo para Cabíria.

Pensando como A Doce Vida reconstrói a ideia de cinema italiano com uma imagem de glamour (Anita Ekberg na fonte), é inusitado perceber como isso é posto em cena. A beleza sofisticada que aparece no filme não é um mero capricho visual ou comentário alegórico, como em um filme de Sorrentino, mas uma tentativa de construir arquitetonicamente – em aliança com a magnífica fotografia de Otello Martelli e música de Nino Rota – uma Roma com sua própria composição de espaço e tempo. A cidade de Fellini, no fim das contas, só existe em seu cinema – mas como é encantador estar nela.

Comentários (1)

Heitor Romero | quarta-feira, 08 de Janeiro de 2020 - 10:16

Que texto lindo. A cena final desse filme mora no meu coração. Obra-prima

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