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Dois no Céu

(Guy Named Joe, A, 1943)
5,6
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

A horizontalidade do céu

6,0

Há uma cena muito marcante ao final de Dois no Céu (A Guy Named Joe, 1943) em que os personagens de Spencer Tracy e Irene Dunne estão lado a lado às margens de um campo aberto. Ele, Pete Sandidge, um piloto da aeronáutica que morreu numa operação durante a Segunda Guerra Mundial, fala com ela, Dorinda, também uma piloto, a quem ama e quem muito o amou. Dorinda olha para o campo aberto, ela não vê Pete, mas o escuta, imaginando que se trata meramente de uma voz na sua consciência. Pete lhe diz para ser feliz e pede que Dorinda aceite essa felicidade. Uma outra figura surge nesse campo aberto, um outro piloto a quem Dorinda já esperava; Pete pede que ela vá até ele, diz que ela está livre (livre do luto da guerra e livre para a felicidade e o amor). E ela então corre em direção a um outro futuro.

Dois no Céu é um filme de guerra em dois sentidos: ele é ambientado durante uma guerra, com seus principais personagens envolvidos no conflito militar; e ele é produzido e lançado durante uma guerra, agenciando várias das ansiedades, receios e afetos que se espalham pelo país (neste caso, os EUA) naquele momento. Ao mesmo tempo, no entanto, ele tende a colocar em cena mais frequentemente as operações do melodrama que as do gênero do filme de guerra. A ação, embora de alguma importância, não tem aqui a mesma relevância que a expressão dos personagens de seus próprios sentimentos ou que o modo como eles se desenvolvem, e crescem, a partir disso.

À exceção da cena descrita, o acesso a essa sensibilidade do melodrama e a sua constituição afetiva, no entanto, dá-se primordialmente pelo roteiro de Dalton Trumbo. A direção de Victor Fleming, afinal, raramente dá conta de imaginar esse texto para além dos lugares comuns dos gêneros que ele agencia. Longe da inventividade que vemos em filmes como ...E o Vento Levou (Gone With the Wind, 1939) e O Mágico de Oz (The Wizard of Oz, 1939), dos quais dividiu a direção com George Cukor (um autor em geral mais interessante), o mundo de Dois no Céu é francamente tão monótono e horizontal quanto as nuvens encenadas no estúdio por onde o seu protagonista circula na vida após a morte.

O texto, no entanto, de fato reserva alguns momentos brilhantes. Sou particularmente interessado pela personagem de Irene Dunne, a piloto Dorinda. Quando a vemos pela primeira vez no filme ela desce de um avião que pilotava sozinha para o encontro de Pete, que está prestes a ser seu noivo. Ela caminha pela base militar ao lado de Pete, que zomba do seu pouso, e ela zomba dele de volta. Ambos se encontram no bar, os dois de uniforme militar. Ele a presenteia com um vestido, eles dançam, falam das viagens futuras e missões próximas, contemplando uma vontade de estar junto que está já interrompida pela Guerra.

A morte de Pete é iminente. Ele não sobrevive a uma missão de risco. E Dorinda é tomada pelo luto. A missão em que perde o noivo se torna uma mistura de trauma e propósito na vida da personagem. E ela não está pronta para aceitar quando outro homem que começa a amar é enviado na mesma incumbência: Dorinda toma a tarefa em suas próprias mãos e conduz o avião ao seu encargo, cumprindo o que Pete não conseguira. A atuação de Irene Dunne ajuda a criar essa personagem, tão particular para sua época. Dunne tem um jeito de nos convidar a simpatizar com essa personagem, sentir por ela, enquanto sustenta uma postura de certeza de suas próprias habilidades.

O mundo criado por Dois no Céu é feito cativante pelas personagens que o habitam – figuras que criam a própria história, para além da visualidade demarcada do filme de estúdio e das metáforas pouco atraentes da vida após a morte. O filme tem, no entanto, um tipo de sucessor (no tema, ao menos) que o supera em quase tudo (quase, pois guardo a atuação e a personagem de Dunne com muito carinho), que é o britânico Neste Mundo e no Outro (A Matter of Life and Death, 1946), uma obra distintamente imaginativa, como os grandes melodramas viriam a ser.

Texto integrante da série Vestígios da Era de Ouro

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