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Críticas

Cineplayers

Pluralidade estética x pluralidade temática.

7,0
A estrutura pode até não fazer muito sentido, mas, do ponto de vista temático, Domingo abre o Festival de Brasília tendo o que dizer. Quando pensamos que antes do longa de Fellipe Barbosa e Clara Linhart tivemos a estreia de Imaginário, belíssimo curta de Cristiano Burlan, tudo se fecha; o fascismo está à porta, e os dois filmes tentam justificar o presente com o passado. É impossível não observar que a sociedade vive em ciclos de releituras, errando os mesmos erros continuamente História afora. Os três realizadores querem mostrar que nada do que está na mesa hoje é novo, e o fazem em escopos diferentes. Enquanto Burlan procura ligar os eventos que propiciaram a ditadura iniciada em 1964 com o cenário atual apenas com a sugestão, Fellipe e Clara falam sobre uma família. É pequeno e fechado, e por isso mesmo tão universalizado.

O filme se passa em 1 de janeiro de 2003, dia da primeira posse do ex-presidente Lula. Nesse dia ocorrerá um almoço de família e agregados para comemorar o ano novo. O almoço é uma bomba prestes a explodir, as novas configurações de seres pensantes estava se desconstruindo e o filme flerta com um espírito de mudança que estava no ar. Não seria mais permitido que as coisas se desenhassem daquele jeito e as pessoas começavam a demonstrar isso, era o futuro batendo e dizendo que nada mais seria igual ao que era antes. Só faz 16 anos, mas o filme consegue capturar o espírito de um tempo como se nunca tivéssemos vivido aquilo, com certa saudade e a promessa de que as coisas mudam quando queremos.

Esse talvez seja o discurso positivo, aliado às sutilezas do trabalho de direção de Fellipe e Clara. Enquanto ela é uma assistente de direção que trabalhou com os mais importantes cineastas da atualidade (incluindo o próprio Fellipe) e estreia na assinatura geral, ele vai pra seu quarto longa e parece pular Gabriel e a Montanha. A nova produção resgata o olhar e as discussões de Casa Grande e cria vínculos com ele, se mostrando em sintonia com uma espécie de gênese da polarização. Ambientado no sul do país e passado numa casa afastada do resto do mundo, Fellipe vai mais uma vez confrontar burgueses e proletários, brancos e negros, patrões e empregados, representados pelos donos e moradores da tal casa. Se sua eficiência em expor sua narrativa não alcança as mesmas notas que seu diptico, o motivo pode ser uma certa repetição de uma espécie de fórmulas da cartilha do cinena brasileiro atual, que geralmente as sugere em separado, amplificado e unificado aqui.

O filme amplia a parceria entre os diretores que nasceu nos longas anteriores e os apresenta com camadas a mais, uma proposta de deslocamento imagético que privilegia o todo do plano, sua construção plural e a capacidade do espectador em abranger sua concentração para além do que a sugestão inicial apresenta; a qualquer momento da duração da cena o foco narrativo muda ou se expande, e cabe ao público desdobrar sua atenção. Esse é o principal aspecto positivo do longa, que conta com um senhor elenco afiado. Apesar da homogeneidade, Augusto Madeira impressiona uma vez mais com um personagem que raramente tem a atenção puxada para si, e que ele trata de capturar com sutileza e doçura. Michael Wahrmann, Clemente Viscaino e o onipresente Chay Suede estão excelentes também, e como é bom rever Itala Nandi.

Lucas Paraizo é o claro nome da vez, o homem que ouviremos falar nos próximos anos. Tendo estado por trás nos últimos meses dos roteiros de Aos Teus Olhos e do próprio Gabriel e a Montanha (e anos atrás no primeiro longa de Fellipe, o fascinante Laura, além de vir ano que vem com o esperado Divino Amor, de Gabriel Mascaro), Lucas tem aqui seu primeiro roteiro, escrito em 2005, finalmente filmado. A forma como os diretores se aproximaram de seus elementos dando a sua cara a eles é de total exatidão das intenções coletivas, assim como o fortalecer do pensamento coletivo que inclui o trabalho dos atores, que parecem à vontade para criar universos muito particulares dentro da proposta não-interruptiva do processo fílmico; todas as cenas se compõem de planos sem cortes, e essa decisão claramente evidencia uma camada qualitativa, promovendo certo fascínio no derrame de ideias, falas e eventos promovidos no plural de cada cena.

Infelizmente o filme peca pelos seus excessos. Fellipe e Clara têm muito o que falar, resolvem falar sobre tudo e criam uma cacofonia temática nada positiva para o todo. Enquanto as conversas paralelas dominam os planos, a experiência é gratificante; o problema é quando as tramas se paralelizam, provocando um engarrafamento de ideias. As múltiplas perspectivas que tanto ajudam o filme a engrandecer, também provocam seu esgarçamento. E breve percebemos que, na estocada final, Domingo narrativamente se aproxima demais de tudo que é produzido hoje no Brasil, em suas particularidades e idiossincrasias, e talvez o filme repita por fim até os erros de similares. É como se esse filme fosse feito todo ano de novo e essa percepção arranhasse os predicados claros que o longa tem.

Filme visto no Festival de Cinema de Brasília

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