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Críticas

Cineplayers

Uma surpresa um tanto familiar.

7,0
A Marvel Studios já não surpreende. O histórico recente da produtora fundada a partir da revolucionária editora de quadrinhos tornou-se, a partir de filmes como Homem de Ferro (Iron Man, 2008) a situação da indústria. Sob sua batuta estão alguns dos melhores atores, diretores e técnicos do cinema mainstream atual; outros filões precisam suar caso queiram demonstrar concorrência nas bilheterias.

Tal galinha dos ovos de ouro de um panorama entre a crise e a transição baseia-se em atender os anseios do grande fandom do mundo através de uma fórmula requentada filme a filme: a fidelidade à mídia original como principal mandamento, escalação de um elenco conceituado que dignifique os papéis arquetípicos sem grandes ousadias e uma linguagem que equilibre drama, ação e humor, funcionando muitas das vezes como um videoclipe: longas sequências coreografadas de dublês, sacadas cômicas nos diálogos e ganchos dramáticos que poucas vezes funcionam além de algo como pretexto para a ação. 

Enquanto não sabemos o quanto esse reinado vai durar (Disney passou anos sem ousar em suas fórmulas muito talvez por falta de concorrentes óbvios, por exemplo), acompanhamos filmes com diferentes resultados. Doutor Estranho é um desses casos que, apesar de não fazer muito para mudar qualquer paradigma, sabe trabalhar de forma funcional com o que tem em mãos: traduzir a história de Stephen Strange para o cinema, mantendo o espírito original mas com a roupagem que introduza para o público que pouco o conhecem - e nisso, cabe o humor, as referências culturais e a trilha sonora pop e familiar. Strange é novo, razoavelmente desconhecido, mas nada que faça doer a cabeça de quem assiste. Como o êxito anterior obtido em Guardiões da Galáxia.

A história do bando de anti-heróis malandros e egocêntricos se repete aqui; a tônica da Marvel em seu início e em seu período mais revolucionário era trazer heróis mais complexos, mais falhos e que tomassem atitudes até questionáveis, mas ainda assim tremendamente simples e acessíveis. E nesse quesito, o protagonista interpretado por Benedict Cumberbatch é um prato cheio. Stephen Strange, como Tony Stark, é um protagonista no limite do detestável quando o conhecemos: um cirurgião ácido, arrogante e grosseiro que tem a vida transformada quando sofre um acidente que destrói os nervos de sua mão e que desenvolve uma obsessão em se curar. A busca o levará até o longínquo templo de Kamar-Taj, onde se torna discípulo de Anciã, uma mestre espiritual com séculos de vida e poderes além da compreensão humana.

No Kamar-Taj, Stephen renasce ao abraçar uma nova vida: enquanto aprende a manipular energias místicas que usará para conter ameaças extradimensionais, passa a se importar com os outros, reata laços e empreende campanhas para salvar outras vidas que não a sua. Não é a primeira vez que a Marvel conta essa história, mas essa nova roupagem é destacada por ser bem mais character driven, baseando sua narrativa muito mais na personalidade do protagonista e os dilemas que enfrenta, com o vilão de Mads Mikkelsen, um antigo discípulo da ordem que rebelou-se e planeja invocar a entidade devoradora de mundos Dormamu, surgindo como nada mais que um reflexo da personalidade que o protagonista tenta abandonar: o calculismo frio e arrogante encantado por promessas de imortalidade lembram o Doutor antes de conseguir seus poderes.

A forma que o filme trata a questão fantástica/sobrenatural não é apenas como artifício; ela também ganha importância dentro da trama, com duas utilizações suas sendo centrais para se desenvolver a narrativa: a primeira, quando a Anciã manda a alma de Stephen em uma viagem astral pelo Multiverso, momento essencial para arrancá-lo do mundo cotidiano e jogá-lo no mundo fantástico, construído em cima da dicotomia fé versus razão. 

Tornar-se um crente não só em poderes e universos sobrenaturais mas também transcender a bolha de egoísmo nesse primeiro momento, impelido por fatores externos, nos leva ao próprio final, quando a arma de Strange se torna a própria manipulação do impossível. O recurso do leit-motiv  (recurso da repetição cômica), introduzido quando o protagonista manipula o tempo intervém no filme de maneira pouco realista. E isso é um acerto.

À sua própria maneira, o personagem quebra sua própria temporalidade, sem desviar da personalidade original. O filme continua pop, narcisista e engraçadinho como seu personagem, mas se permite desprender do convencionalismo espaço-temporal habitual por breves momentos, gerando uma das sequências de embate menos tradicionais da Marvel - quantas vezes vimos seus filmes desenhar embates mentais e não físicos? Ou jogos de cansaço? Ou brincadeiras com os próprios dispositivos narrativos? 

Nada de novo sob o sol, é verdade, nem mesmo no cinema mainstream. É um filme ainda longe do que chamamos de ousado, porém é bem mais sóbrio e menos afetado do que se tornou padrão da Marvel - as lutas de herói e vilão se dão desde o primeiro encontro, geram consequências para ambos os lados e o afunilamento de tensão psicológica é breve e às vezes até mesmo acelerado. 

Portanto, subtramas como o aprofundamento da personagem Anciã, apesar de dar maior destaque ao talento de Tilda Swinton acabam atrasando o filme dado o tempo destacado; tira os holofotes e até mesmo o peso de Stephen Strange durante o desenrolar do filme. O humor cheio de referências culturais são um corpo estranho na sobriedade do filme, que merecia um tratamento mais sério. Strange não é um personagem tão engraçado quanto o Homem de Ferro e os Guardiões da Galáxia, e tentar torná-lo um mostra que a Marvel adora cair no erro de “xerocar” os heróis, tentando desconfortavelmente enfiar todos eles na mesma fôrma. 

Quando tenta ser um filme mais “de ação”, distribuindo acrobacias, socos e empurrões, também cai de maneira repetitiva no terreno do genérico. Se temos um herói que prefere resolver os problemas com o intelecto, não usá-lo recai novamente no terreno de não transgredir a própria fórmula que fez o estúdio lucrar tanto. 

Mas o tempo dirá. Doutor Estranho, mais sóbrio e mais problemático, com algumas set pieces mais elaboradas, não foi recebido com a mesma dose de clamor e entusiasmo com o filme dos grandes heróis da Marvel, que agora procura seus heróis mais desconhecidos para continuar em voga, alavancar vendas e quem sabe, tentar algo de diferente aqui e ali. Se Doutor Estranho será lembrado como só mais um entre dezenas ou se marca uma transição arranhando a superfície de algo novo, ainda é cedo para saber. Mas no todo, fica a impressão de surpresa - pero no mucho.

Comentários (2)

Arthur Brandão | domingo, 20 de Novembro de 2016 - 16:03

Boa crítica Brum, gostei. Assisti o filme ontem, e sai com uma sensação boa da sessão, mas o que me irritou foi a dita fórmula Disney/Marvel: tornar um personagem engraçaralho quando claramente, Stephen Strange, não é. Mas tirando isso e outras coisas já citadas, o filme consegue entregar, se não uma novidade, uma experiência diferente, o filme é realmente uma ''viagem''.

''Dormammu, eu vim barganhar''.

Davi de Almeida Rezende | segunda-feira, 27 de Novembro de 2017 - 06:32

Mano, admite logo que vc gosta de entretenimento infantil. Melhor do que ficar forçando motivos para disfarçar o óbvio.

Acho q até uma criança se sente ofendida assistindo esse filme.

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