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Dunkirk

(Dunkirk, 2017)
6,9
Média
418 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

Assim como seus personagens, diretor sobrevive por pouco.

5,0
Uma história curiosa vista dos primórdios do cinema: enquanto dirigia o média-metragem Enoch Arden em 1915, D.W. Griffith sugeriu que uma cena em que a protagonista Annie Lee espera pela volta do marido fosse continuada pela cena do personagem-título Enoch naufragando. Foi uma polêmica entre a equipe: como contar uma história assim, em alternância de pontos de vista, “indo e vindo”? “Bem, não é o jeito que Dickens escreve?”, perguntou Griffith. “Sim, mas isso é Dickens, é a maneira de escrever um romance; é diferente”. “Oh, nem tanto”, respondeu o influente diretor. “Escrevemos romances com imagens, não é tão diferente!”.

Nolan é um romancista de imagens, não só por herança cultural e industrial mas também por vocação; a separação dos personagens elencados em núcleos, o coral alternado de sua percepção de um ou mais fenômenos e conflitos; enquanto o escritor britânico do século 19 usava racionalmente a técnica de trocar perspectivas e temporalidades para segurar a “emoção” da história publicada de maneira periódica, os cineastas praticantes da narrativa clássica souberam cooptar a seu favor para compor uma obra cuja sensação de temporalidade retraísse e dilatasse à favor da catarse do efeito dramático.

É bem verdade que o cinema de guerra é composto por filmes que comportam um pequeno microcosmo de drama, horror, suspense e esperança. A dobradinha de Clint Eastwood composta por A Conquista da Honra e Cartas de Iwo Jima ou a ultraviolenta via crucis de um objetor de consciência de Mel Gibson em Até o Último Homem são episódios verídicos que compuseram um panorama minúsculo do evento limítrofe do século que foi a Segunda Guerra Mundial; seja na resiliência do “santo mortal” Desmond Dodds, a farsa de Iwo Jima orquestrada na faceta americana do filme Eastwood espelhada nas sufocantes profundezas das linhas japonesas, há todo um coro de perspectivas de homens que basicamente “foram ao inferno e voltaram”, como afirma frequentemente a tônica desses filmes.

É o mote que também move Dunkirk, a sufocante jornada de sobrevivência baseada na trágica Batalha de Dunquerque ocorrida em 1940. Quando um batalhão de soldados ingleses e franceses se encontrou cercados por tropas alemãs na costa francesa, sua única esperança residiu nos barcos de civis britânicos que heroicamente evacuaram mais de trezentos mil soldados. Em seu primeiro filme baseado em fatos reais, Nolan não se interessa pela macro-escala, das histórias pré-Guerra, dos interesses políticos e militares; praticamente nenhum personagem tem passado além do momento que encontrou-se em Dunkirk. Não é muito diferente na frequentemente encurralada Gotham em sua trilogia dedicada ao herói das HQs Batman ou de toda a aventura de imersão dos sonhos vista em Batman - A Origem. Como fã de diretores que encontram-se no limite entre a narrativa e o efeito puramente sensorial - entre seus filmes favoritos incluem-se Um Corpo que Cai e Doze Homens e Uma Sentença - não soa estranho que seus filmes antes de serem documentos sejam jornadas psicológicas exteriorizadas - são seus personagens e suas ideias que compõem o ambiente, suas ações o influenciando e deformando.

Nesse sentido, importa menos o efeito do que o Batman de O Cavaleiro das Trevas tenha vivido antes do filme - importa como naquele filme ele responderá à provação do Coringa, ao assassinato de pessoas queridas, à corrupção de íntegros homens de confiança - os protagonistas de Nolan são moldados sobretudo pela ação que está sendo filmada. É o caso dos três núcleos de Dunkirk, separados entre um soldado que aguarda resgate na praia, os pilotos ingleses no céu que combatem os caças nazistas que bobardeiam os grandes navios de resgate e uma pequena família que veleja a bordo de um iate para resgatar o maior número de soldados possíveis. Em seu filme mais enxuto, a montagem alternada usada em exaustão em A Origem é novamente utilizada em larga escala; todos os esforços enquanto a evacuação acontece desdobram-se em muitos pequenos conflitos. Dunkirk impõe-se quase como uma colcha de retalhos onde episódios acontecem cada um em um espaço-tempo diferentes de maneira irregular. 

Os diferentes níveis de sonho que renderam as duas horas e meia de A Origem nem sempre transmitiam a sensação de estar apresentando um conflito em si em toda a sua emoção e suspense, esticando-se e voltando da calculada maneira do diretor de explicar “estamos aqui, vamos por aqui”, por meio dos diálogos e acabando por compor um filme que mostrou o habitual calcanhar de Aquiles de Nolan: o didatismo. E Dunkirk sofre em boa parte do mesmo mal. Está nas legendas da abertura e que situam cada cena no seu tempo e lugar, está nos diálogos antinaturais que parecem mais explicações do que uma conversa, no uso óbvio da música que utilizam o básico da linguagem audiovisual para criar prenúncios de esperança ou terror. 

Nunca se está sozinho nos filmes de Nolan - nem na guerra. O que é puramente dramático (combater um caça nazista, escapar de uma embarcação afundando, sobreviver a um bombardeio, resgatar pessoas em perigo) frequentemente é vítima de diálogos “explicar porque devo desempenhar tal missão” ou o ataque agudo de violinos em seus crescendos e diminuendos que informam que a situação iniciou, desenvolveu-se e terminou. A misé-en-scene de Nolan é previsível até dizer chega - se o personagem destaca-se em um plano por ser o único sobrevivente de um tiroteio, será então testemunha de toda a sorte de intempéries e sobreviverá por simples composição de quadro (está em primeiro plano, as vítimas em segundo); se um personagem encontra-se em perigo, o paralelismo da proximidade de outro nos confirma que por mais prolongado que seja o nosso sofrimento, o investimento terá recompensa. Para o rei do blockbuster inteligente, o uso da linguagem e a composição da narrativa não são lá muito criativos, mas derivativos; esquecíveis, até. 

Sua ambição de “romance de imagens” perde frequentemente na exploração de potencialidades dramáticas ao querer mais “contar” do que “mostrar”. Não basta mostrar um personagem perturbado pela guerra, sua condição tem de ser enunciada em voz alta; quando uma escolha moral difícil é apresentada, a ação dilata-se para que princípios sejam discutidos. E como nenhum inimigo é efetivamente mostrado no filme, eles são como o mar, um naufrágio ou uma queda de avião: mais uma força da natureza impessoal do que qualquer outra coisa. O inimigo parece atirar e bombardear pela mesma razão que a maré sobe. Então tudo o que resta aos núcleos de perspectivas é catalogar o desfile progressivamente repetitivo e redundante; os pequenos sacrifícios e salvamentos são preparação para grandes sacrifícios e salvamentos. Testemunhe e acontecerá.

E os chavões da filmografia de Nolan estão todos lá: a cena muito lembrada dos barcos de detentos e do barco de civis que vivem o drama de explodir ou não um ao outro de O Cavaleiro das Trevas encontra velhos novos ecos aqui (ir à costa e correr o risco de morrer para salvar soldados ou dar meia volta? Expulsar um para aliviar o peso ou sacrificar a todos?). O dilema é exposto mais de uma vez em variados contextos, mas de maneira geral, todos correm riscos e sacrificam-se. Os filmes do inglês são uma vitória da moral, por assim dizer. Enquanto a narrativa clássica dos cineastas reforçava os valores em seu discurso e usavam-no como catalisador da catarse dramática, pós-classicistas como Nolan são todos pela ação dramática e a superação humana não é um elemento dialético, um conflito a ser resolvido, mas uma justificativa para a tour-de-force, para as enormes set-pieces que decantam o único problema do ser resolvido e esticam a sua duração. Quem está em Dunkirk deve sobreviver - e pulará da sobrevivência na praia para uma sobrevivência em um barco afundando para a sobrevivência em alto mar. 

Quando seus vilões existem, são tudo que um homem não deve ser para contrastar com seus heróis que representam tudo o que um homem deve ser. O Coringa é o caos e a anarquia, o Batman é a ordem e a justiça. Quem ganha a luta, ganha Gotham e a modela como mais social ou mais impiedosa. Quando filma Dunkirk, um filme de antagonistas sem rosto (forças naturais, soldados inimigos de quem nunca vemos o rosto ou ouvimos a voz), o que acontece? Bem, a justificativa já está posta desde o início, poucos tem dúvidas do dever e logo são motivados ou vencidos pela voz da razão. Restam as set-pieces, as pequenas sequências estilizadas que acabam sendo o melhor do filme, já que a dramaturgia inexiste, surge sem razão alguma e que pretensamente é inteligente, mas que não dialoga em momento algum e responde de prontidão. 

Curioso que o cineasta, que pisa firme para exibir seu filme em 70mm, o que faz com que poucas salas sejam realmente aptas de mostrar o filme em sua visão de janela original e que critica a Netflix por lançar seus filmes imediatamente em streaming na televisão, alegando que Dunkirk “é um filme que carrega você por uma situação de suspense, que faz você sentir que está lá, e que por isso exige uma distribuição em salas de cinema”. A bitola é maior do que nunca, o som é cristalino, ensurdecedor e cheio de camadas; mas para o filme anunciado como o filme do diretor que “tem menos diálogos e menos caraterização e mais foco em eventos” - como anuncia a resenha na Morgan Magazine e a entrevista do mesmo para a EW (que teria se inspirado em filmes feitos nos últimos anos como Mad Max: Estrada da Fúria de George Miller e Gravidade de Alfonso Cuarón) - ainda imprime uma necessidade alarmante de não deixar o espectador perdido no ambiente, em dilema sobre o que fazer, em deixar a superproduzida malha sonora também ser narradora e não apenas uma ditadora de tons. 

A mão pesada perde em sofisticação e subjetividade na hora de expressar estados e feitos. Para quem se pretende imersivo, não há a ambição hitchcokiana de “ver sem ouvir e ainda entender” ou a mescla da justaposição de planos-detalhe ou a paisagem sonora construindo o filme a conta-gotas como na abertura de Era Uma Vez no Oeste. Em um “parque de diversões com possibilidades infinitas”, como resumia Orson Welles, há apenas a quase primária repetição da técnica Griffith-Dickensiana: ação com base moral, escopos de perspectiva com base puramente retórica, puro exercício de estilo que não transcende o lugar comum. Não estranhe a absoluta falta de efeitos gráficos: todo o resto de Dunkirk é tão clean como esse aspecto. Filme de guerra redondo e calculado, que “não dá chance ao azar”, sem momentos de maior ousadia estética e amparando-se em seus valores para dignificar a própria importância, com tantas similitudes e tão pouco revisionista em relação à histórias heróicas vistas na tela há 70 que já parece nascer datado e sem frescor nenhum. Um lugar comum na filmografia de Christopher Nolan, que apesar do reconhecimento como “renovador” não parece muito esforço para fazer algo além do óbvio.

Comentários (11)

Matheus Johan Darswik Rodrigues Barbosa | segunda-feira, 31 de Julho de 2017 - 22:28

Todos os filmes de Nolan são criticados pela grande maioria da equipe de críticos do site,impressionante como existe este ódio quanto aos filmes de Nolan e não é questão de amar ou odiar o cineasta inglês,mas pelo fato deste radicalismo em relação aos filmes do cineasta.

André Araujo | segunda-feira, 31 de Julho de 2017 - 23:04

Ao meu ver, Nolan precisa para de ver o cinema como uma ciência exata. Não é a toa que seu filme mais forte (TDK) é o seu melhor, com sobras até. Um roteiro amarradinho, como o do divertido, mas só isso, Inception não está a altura nem da cena do interrogatório de TDK. É o que eu penso.

Alexandre Carlos Aguiar | sexta-feira, 04 de Agosto de 2017 - 22:26

Quero esclarecer aí ao Beloto irritadinho que não sou fã do Nolan e nem bajulo o sujeito. Incomoda é esta perseguição (sim, é perseguição!) desnecessária a um diretor que inventa e sai do lugar-comum. Se você reclama da falta de argumentos contra uma crítica que segue a onda, por que não expõe argumentos técnicos contra o sujeito ao invés de "bajular" os críticos? A proposta é sua. A meu ver este site permite a ordem e contra-ordem e ficar focando nos comentários ao invés de objetivar a crítica no assunto é falta do que fazer.

Ricardo Amaral Guedes | sexta-feira, 04 de Agosto de 2017 - 22:27

André, o que torna TDK legal é o Coringa. A loucura do personagem quebra a exatidão do diretor.

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