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Em Chamas

(Beoning, 2018)
7,6
Média
127 votos
?
Sua nota

Críticas

Cineplayers

Fogo e paixão.

9,0
Lee Chang-Dong tem um currículo curto e infelizmente tem aumentado o tempo de espera entre as produções. Um cineasta relevante como ele faz falta, e ao assistir um filme como o novo Em Chamas esse pensamento se faz óbvio. Em filmes anteriores, o autor já tinha abordado em seus roteiros questões que envolvem o julgamento pessoal a partir de uma observação comprometida, aqui esse mote é o centro da narrativa, e por ele a trama se finca. A chave do mergulho está em cena onde a protagonista feminina finge saborear uma laranja de maneira didática, e declara que a importância para o funcionamento da fantasia é a crença absoluta no jogo proposto, em diálogo que alude à arte da interpretação, mas que o filme traz para ler a persona de Jungsoo, o silencioso personagem central do longa.

Jungsoo caminha à margem do mundo até ser resgatado por uma amiga de infância, que vê nele um candidato ideal para cuidar de seu gato enquanto ela viaja pra África. Na despedida eles transam, e Jungsoo, a partir de então, passa a cultivar um sentimento cada vez mais profundo pela jovem alpinista social. Ao voltar de viagem amiga de um estranho com o qual travou contato, Haemi abre pra Jungsoo o mundo de Ben, um jovem rico que destoa de ambos em sua estabilidade financeira. Três personagens cheios de camadas começam a se apresentar a partir da revelação de uma bizarra atividade de Ben, que será determinante para aflorar em Jungsoo a gênese da desestabilidade emocional que afetará o próprio longa. Ainda que desde o início se construa a ideia de que a observação do protagonista é determinante para o foco da narrativa, a partir desse momento o filme assume que seu olhar afetado vai decidir o rumo das coisas sem ter acesso à verdade, mas sim com sua percepção - que pode estar errada.

A consonância do trabalho fotográfico a cargo de Kyung-pyo Hong (de Expresso do Amanhã e O Lamento) com a trilha composta por Mowg criam uma natureza hipnótica, em um filme calcado no realismo para desenvolver em seus campos particulares - aí sim uma atmosfera de suspensão da realidade, onde gradativamente entendemos que tudo poderá acontecer. Apoiando seu desenvolvimento no jogo mental estabelecido em apenas uma testemunha ocular, o filme transforma o espectador em alvo duplo: há um filme a se assistir e uma segunda natureza a ser contemplada através do frequente pensamento relacionado a percepção do protagonista. Tem ele o distanciamento necessário para tirar conclusões? O trabalho da fotografia é seguir o olhar de Jungsoo, e o da trilha de adicionar estranheza crescente a uma situação cada vez mais perturbada. 

Essa análise comprometida do todo faz parte da paleta de interesses de Chang-Dong, que mesmo em Poesia fez de forma leve esse movimento. Em Chamas não tem medo das perguntas e as faz a todo momento. De duração extensa, o total era necessário para que se estabelecesse uma confiança entre seu trio protagonista de modo gradual; além de não perder nada em ritmo, ganhou em desenvolvimento dramático. O que o autor coreano também torna a realizar aqui é uma translúcida relação com a psicologia de seus personagens, que podem refletir inúmeras coisas diferentes. Saindo da zona onde apenas um personagem central era vetor de ação, o novo longa se estabelece entre as molas que Jungsoo, Haemi e Ben movem em seus respectivos lugares na direção aos outros, em interpretações hipnóticas do trio. 

É com essa mobilidade de possibilidades que o longa vencedor do prêmio FIPRESCI em Cannes conduz a narrativa, graças ao renovado talento de seu diretor em reproduzir as ambiguidades de suas criações. Ainda que ecoe, aqui e ali, colocações políticas sobre a crise econômica que afeta nosso entorno psicológico, é sobre a criação e a manipulação da memória que o filme se debruça, movendo sempre pra frente um jogo de adivinhação cujo truque nós fazemos conosco mesmos. A partir daí, conjecturar no terreno das evidências pode ser arriscado, escolher o caminho a seguir será com certeza uma aposta, e se embrenhar na obsessão a chave para um mistério crucial moderno: o que reter e o que descartar será decisivo.

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