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Entre Duas Águas

(Entre dos aguas, 2018)
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Críticas

Cineplayers

Mares de tormenta

7,5

Dois irmãos unidos desde a infância, separados há alguns anos por contingências da vida, estão prestes a se reencontrar. Como em inúmeros filmes produzidos na atualidade, e alguns presentes no Olhar de Cinema, os eventos não são muito claros em definir ficcionalização em ambiente documental, ou você versa. Isra e Cheíto são irmãos, ciganos e se veem envolvidos em atos que rivalizam entre lícito e ilícito ao longo de sua juventude e vida adulta. A partir dessas informações, um universo de possibilidades é aberto para ambos e os limites entre ficção e realidade ficam difusos, ainda que a realidade filmada também ela já seja uma espécie de ficção; câmera ligada, ninguém mais consegue fugir da criação de uma persona filmica, pro bem e pro mal.

O diretor Isaki Lacuesta já tinha encontrado os irmãos em um primeiro longa, 15 anos antes. O fascínio pela relação fraternal vista o faz voltar até eles nessa nova produção, grande vencedora do festival de San Sebastian de 2018. Entendemos parte desse interesse porque 'Entre Duas Águas' eventualmente rememora o passado de seus personagens, ao inserir cenas do capítulo anterior como flashbacks a refletir suas atuais histórias de vida. O recurso não apenas permite que possamos acessar esse passado da maneira mais genuína possível como também aguça a curiosidade a quem não tenha descoberto esse trabalho, além de tratar de maneira muito consistente o paralelo entre os dois momentos daquelas existências, num registro que Richard Linklater tão bem já demonstrou saber trabalhar e que aqui alcança sensibilidade parecida.

Não poderiam ser mais opostos os caminhos dos irmãos. Enquanto Isra se prepara para sair da cadeia no início do filme, Cheíto também está a voltar para casa, sendo ele marinheiro embarcado. No passado que ambos precisam acertar, a criminalidade aportou em sua família e criou um distanciamento irremediável entre Isra e sua mãe. Em contato outra vez, os irmãos terão seus dilemas particulares a confrontar: o sonho de Cheíto em ser padeiro que pode precisar ser abortado pela falta de recursos, e o retorno à sociedade de Isra, em busca de emprego e constantemente em vias de ceder a tentação do crime. O filme radiografa o encontro dos irmãos com carinho ímpar, ao mesmo tempo em que reflete os sonhos de cada um sendo debatido por ambos e seus amigos, um grupo grande de apoio e segurança em meio ao caos da chamada vida adulta.

O filme tem textura ligeiramente granulada que parece recusar qualquer traço de fantasia, ao centrar seu visual no aspecto menos rebuscado. A contradição vem a bordo dessa escolha técnica, que é um artifício como qualquer outro a conferir relevância ao material. O trabalho de montagem é realizado com muita precisão em um projeto em que tal eficiência era primordial pra conferir ritmo caminhando em compasso duplo, de quereres e impressões. Apesar da união evidente, os irmãos têm claras personalidades discordantes, ainda que tentem compreender e aconselhar um ao outro. Infelizmente o personagem Isra tem seus conflitos bem mais explorados, dando vazão àquela máxima de que 'tragédia vende mais', enquanto Cheíto parece ter sua trajetória simplificada.

Ainda que seus caminhos não sejam necessariamente distantes de outras narrativas que explorem uma dualidade entre Bem e Mal insediando realidades marginalizadas, o talento de conceber cenas dramaticamente pulsantes (como o mergulho dos irmãos, a invasão da água nos barracos a beira mar, os momentos íntimos entre Cheíto e sua esposa, e outros, nenhum deles imbuído de alguma "beleza" gráfica particular) do diretor transforma o desenrolar da vida simples dos dois irmãos e seu amoroso entorno uma ode a arte de sobreviver. 

Filme visto no Olhar de Cinema de Curitiba

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