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Críticas

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O amor exacerbado pela vida enfrenta a necessidade desesperada de dar e receber amor em virtude de existências solitárias que se prolongam por séculos.

9,0

O mal é um ponto de vista (...) Deus mata, assim como nós; indiscriminadamente. Ele toma o mais rico e o mais pobre, assim como nós; pois nenhuma criatura sob os céus é como nós, nenhuma se parece tanto com Ele quanto nós mesmos, anjos negros não confinados aos parcos limites do inferno, mas perambulando por Sua terra e por todos os Seus reinos. – Lestat de Lioncourt 
 

A origem mitológica dos vampiros perde-se no tempo. A crença nesses seres é universal,  verificável nas civilizações mais primitivas e mais distantes entre si. Encontra-se documentada no Egito, na Mesopotâmia, na Grécia, em Roma, na China, na América. Historiadores ensinam que o sangue, compreendido como fonte de vida, foi usado pelos primeiros caçadores que besuntavam seus corpos em rituais mágicos ou mesmo o bebiam. Esses homens perceberam que à medida que o sangue se esvai do corpo de um animal, a vida  enfraquece até se desfazer. Assim, “sangue é vida” (Deuteronômio, 12:23).

Enquanto personagens, os vampiros se desenvolveram no teatro, na literatura e no cinema por influência do trabalho de Bram Stoker, escritor que realizou pesquisas históricas e se baseou na figura real do Príncipe Vlad III – que nascido na Transilvânia em 1431, ficou conhecido como Vlad Tepes (Vlad, o Empalador) – para desenvolver o seu Drácula, personagem e romance dos mais aterrorizantes da literatura inglesa do século XIX. 

Em 1897, quando o livro de Stoker foi publicado, o próprio autor já havia apresentado seu personagem no teatro, na peça Dracula, or The Un-Dead. Porém, foi somente com a publicação do livro e, mais tarde, dos filmes, que o personagem popularizou-se. Desde então, os vampiros tornaram-se assunto de inumeráveis obras de ficção, sendo que em cada uma assumem variações da caracterização adotada por Stoker. Foi somente na década de 1970 que ao processo de desenvolvimento desses personagens somaram-se novos elementos realmente significativos, concebidos pela imaginação de Anne Rice e delineados em suas Crônicas Vampirescas. 

Anne Rice nasceu em Nova Orleans, em 1941, formou-se em Artes e Criação Literária pela Universidade de Berkeley e em 1976 publicou seu primeiro romance, Entrevista com o Vampiro, o primeiro da série que ficou conhecida como Crônicas Vampirescas e que no total conta com dez volumes. Os novos elementos adotados pela autora são de base filosófica, religiosa, existencialista e niilista. Rice partiu da história de Louis de Pointe du Lac, de Lestat de Lioncourt e da vampirazinha Claudia, relatada a Daniel Malloy em um quarto de hotel, para criar um universo de angústias existenciais, questionamentos religiosos profundos, dúvidas sobre padrões comportamentais, éticos e morais, questionamentos estéticos, inquietude e insatisfação constante, tudo envolto em muita sensualidade, violência, beleza, crueldade, amor, estilo, compaixão e elegância. 

O roteiro, filmado pelo irlandês Neil Jordan, foi desenvolvido pela própria Anne Rice que não fez mais do que adaptar seu livro às exigências da linguagem cinematográfica. Da história original foi omitido o que se poderia considerar como excesso, mas mantido plenamente o clima gótico, o fatalismo, a melancolia e um certo lirismo épico.

Daniel Malloy (Christian Slater) é um jornalista contemporâneo que atravessa as noites entrevistando pessoas que possam lhe contar boas histórias. Ao acaso, acaba por abordar Louis (Brad Pitt), que se revela um ser incomum e lhe conta fatos que mudarão para sempre sua própria existência. Louis lhe fala sobre sua vida, desde quando era apenas um proprietário rural na Louisiana do  século XVIII, sua transformação em vampiro por influência de Lestat (Tom Cruise), sua convivência problemática com o próprio Lestat, seus conflitos e dilemas morais frente às exigências da natureza de vampiro. Para viver é preciso matar, justamente quando se sente, superlativamente, a vida como o maior de todos os bens. 

O surgimento de Claudia, a criança-vampiro com quem Louis e Lestat convivem por décadas, dá novo sentido à existência de ambos, serenando conflitos enquanto, pouco a pouco, produz outros. A explosão de ânimos entre a impotente Claudia (o ser sexagenário enclausurado no eterno corpo de criança) e Lestat, a descoberta dos vampiros do Velho Mundo no Teatro dos Vampiros de Paris –  onde vampiros se passam por humanos que fingem se passar por vampiros –, formam a trajetória ao longo da qual Rice exibe seus conhecimentos sobre história, arte e filosofia. 

Guiados pelo roteiro da escritora, Neil Jordan e sua equipe representaram dois séculos de história, considerando arquitetura, figurinos, música e detalhes diversos combinados em uma montagem que nunca deixa de acentuar os aspectos emocionais que envolvem os personagens. Louis é retratado como o vampiro sensível, a síntese do romântico melancólico, contemplativo e poético perdido em questionamentos filosóficos para os quais não encontra respostas. Lestat é o vampiro sem culpa, amoral e impetuoso, mas não totalmente liberto de carências e emoções que disfarça com omissões, violência e arrogância. Armand, o líder do Teatro dos Vampiros, é o manipulador, um predador que não extrai de suas vítimas apenas o sangue, mas também o sentido para continuar vivendo século após século. Para conseguir o que deseja, Armand não se detém diante de nada. É uma história de sobreviventes, de personalidades que desafiam o tempo rumo à eternidade, carregando o inferno e o céu unidos dentro de suas próprias almas. Se no filme soluções maniqueístas podem ficar subentendidas, quem conhece a obra de Rice sabe que não se trata disso. Nem Armand e Lestat são totalmente maus, nem Louis é irreprovável. 

A sombra da religiosidade se traduz no sentimento de culpa e na busca por respostas que tortura Louis. Como é possível ser uma criatura do mal e lamentar o sofrimento alheio e a própria condição de ceifador de vidas? A crítica à moralidade cristã feita pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche (especialmente em seu livro Genealogia da Moral), assim como suas idéias sobre o “Super Homem” (Assim Falou Zaratustra) está implícita na contradição entre as personalidades de Louis, Lestat e Armand e se constitui em foco de abordagem constante na obra de Rice, onde existencialismo e niilismo se complementam. 

Ponto de polêmica inicial foi a escolha dos atores, em especial a de Tom Cruise como intérprete de Lestat. Cruise, assim como Brad Pitt, em meados da década de 1990, era visto como um rosto bonito destinado a decorar as telas em filmes caça-níqueis. O ator já havia tentado reverter esse quadro em 1989 quando interpretou o idealista Ron Kovic em Nascido em 4 de Julho e chegou a conquistar uma indicação ao Oscar. Pitt, por sua vez, estava na época envolvido com as filmagens de Lendas da Paixão, o que pouco contribuía para lhe acrescentar algum crédito, apesar do filme ter conquistado o Oscar de Melhor Fotografia em ano de Forrest Gump.

Não é incorreto considerar que Entrevista com o Vampiro deu maior credibilidade a Cruise e a Pitt, pois ambos desenvolveram interpretações inspiradas de personagens desafiadores em momentos cruciais de suas carreiras. Tom Cruise, especialmente, fez um trabalho exemplar, representou com perfeição a irreverência, a violência, a personalidade apaixonada de Lestat a ponto de jogar no vácuo, definitivamente, os preconceitos daqueles que o consideravam como incompetente, inclusive da própria Anne Rice que inicialmente se declarou descontente com a escalação do ator e, por fim, acabou reconhecendo a excelência do trabalho desenvolvido por ele.  

Outra beneficiada pela qualidade geral que Neil Jordan conseguiu alcançar foi a pequena Kirsten Dunst. Na época, com apenas 12 anos, a atriz assumiu com louvor uma personagem que foi reelaborada (a Claudia do livro tem apenas cinco anos), mas que continuou  extremamente complexa. Claudia é um estridente ponto de interrogação que não se revela em momento algum, nem mesmo no livro. Não se tem uma perspectiva maior de sua vida interior e se poderia até pensar que Rice teve pouca habilidade ao desenvolver Claudia se não fosse o caso da personagem ter sido inspirada em sua própria filha, perdida para a leucemia aos cinco anos de idade.

Já Antonio Banderas, então recém-chegado a Hollywood após consolidar sua carreira na Espanha e chamar a atenção do resto do mundo, emprestou sensualidade e sutileza ao pérfido e sedento Armand. No prejuízo ficou Christian Slater, pois Daniel não chegou a ser tão explorado quanto o foi na literatura. 

Também é verdade que os trunfos da produção não estão apenas nas ótimas interpretações, na história revolucionária de Rice (abriu novas perspectivas ao gênero terror, que infelizmente, de maneira geral, permanece medíocre), na representação competente do tempo histórico desenvolvida por toda a equipe técnica, mas também na fotografia, nas escolhas sutis de planos e movimentos de câmera. Há uma certa semelhança entre o começo e início de Entrevista com o Vampiro e de Forrest Gump, lançado naquele mesmo ano de 1994. Apesar das locações e contextos diversos, a câmera procura seus personagens em meio ao cotidiano, neles focaliza sua atenção, conta sua história e se afasta, devolvendo-os ao mundo.

Os vampiros de Rice e Jordan transitam pelo mundo, tomam parte na vida das pessoas, as observam de pontos privilegiados e traduzem o mais profundo da alma humana ao refletir suas necessidades essenciais. Eles buscam compreender o mundo, a humanidade, o tempo histórico, os anseios da alma por amizade, companheirismo e cumplicidade, por complementação, por amor, enfim.

Apesar de sobrenaturais, eles continuam humanos e o amor, para eles, é questão central. O amor exacerbado pela vida enfrenta a necessidade desesperada de dar e receber amor em virtude de existências solitárias que se prolongam por séculos. Talvez esse sim seja o ponto que justifica o sucesso de Anne Rice, pois algo de fantástico é tratado pela arte como não mais do que humano e, ao mesmo tempo, tão fantástico quanto somente a própria odisséia humana pode ser.  O amor é amor entre almas, o encontro de essências espirituais que se realiza pelo sangue que é fonte de vida, tanto quanto o próprio amor é essência que transcende o tempo. 

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