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Críticas

Cineplayers

Um dos dois ou três melhores filmes produzidos no mundo em 2007.

8,0

Em O Escafandro e a Borboleta, o diretor Julian Schnabel volta a tratar do tema tão presente em seus dois filmes anteriores: o da luta do ser humano pela vida através da arte. Em 1996, com o lançamento de Basquiat – Traços de uma Vida, o cineasta construiu uma biografia do pintor Jean-Michel Basquiat, morto em 1988, aos 27 anos de overdose. Quatro anos depois, Schnabel realizou Antes do Anoitecer, em que trouxe às telas a vida do poeta cubano Reynaldo Arenas, falecido em 1990 por problemas derivados da Aids. Em cada um desses filmes, somos levados a conhecer dois artistas, extremamente talentosos em seus ofícios, que se deparam com obstáculos aparentemente intransponíveis impostos pela vida (o vício pelas drogas de Basquiat e a repressão política sofrida por Arenas decorrente da sua opção sexual e a posterior contração do vírus HIV). Em ambos os casos, Schnabel parece querer transmitir a mensagem de que quando a ciência não for capaz de trazer a salvação da matéria, a redenção e a paz espiritual poderão ser encontradas através da arte em seu estado mais puro. 

Em O Escafandro e a Borboleta, muda-se o biografado mas a essência permanece a mesma. Dessa vez, a lente de Schnabel vai nos mostrar a vida de Jean-Dominique Bauby (Mathieu Amalric), redator-chefe da revista francesa Elle que, aos 42 anos, durante um passeio de carro com seu filho, é vítima de um derrame cerebral. Após três semanas em coma, ele acorda na cama de um hospital naval, cercado por médicos e enfermeiras. Logo se constata que o paciente tem plena consciência do que ocorre ao seu redor. Ele vê, ouve e compreende o que as pessoas falam. Não demora a perceber também que seu corpo está inteiramente paralisado dos pés à cabeça, com exceção do olho esquerdo. Seu mundo é o seu quarto. Imóvel, ele se limita a observar as janelas, as cortinas, a televisão e a porta de entrada. É o quanto o campo de visão de seu olho alcança. Seu cotidiano é dividido entre longos períodos de descanso e a visita de sua ex-exposa Celine (Emmanuelle Seigner) e mãe de seus três filhos, amigos (um homem que lhe leva um boné de presente e outro que permaneceu como refém durante quatro anos em Beirute por ter trocado com Bauby a vaga num avião que, posteriormente, seria seqüestrado) e médicos. Com nenhuma destas pessoas há qualquer comunicação.

Será através do seu olho esquerdo que Bauby começará a se relacionar com o mundo. A partir de um intrincado – e ao mesmo tempo simples – sistema de comunicação inventado por sua fonoaudióloga (Marie-Josée Croze), as letras mais utilizadas na língua francesa são narradas em voz alta, uma após a outra, restando a Bauby piscar no momento em que é pronunciada aquela necessária para a construção de uma palavra, uma frase. 

Assim, desta forma lenta, silenciosa e incrivelmente trabalhosa, Bauby encontra um meio de amenizar a prisão que lhe é imposta pela incapacidade locomotora (a imagem recorrente dele no interior de um escafandro retrata a sensação de encarceramento). Letra por letra, vocábulo por vocábulo, sentença por sentença, Bauby consegue sair do seu casulo. Após a rejeição inicial à sua condição praticamente vegetativa (numa das mais belas seqüências do filme, toda centrada na expressão de Croze, Bauby lhe confessa o seu desejo de morrer), o protagonista resolve encarar a situação com as armas que possui. Percebe que, além do olho esquerdo, as únicas coisas que não foram atingidas pelo derrame são a sua imaginação e sua memória (a representação destas nos é dada pela figura da borboleta). Com a esperança renovada, decide retratar suas experiências em um livro, o qual foi efetivamente lançado na França, com enorme sucesso, apenas alguns dias após a morte de Bauby.

Do ponto de vista cinematográfico, O Escafandro e a Borboleta sempre se  apresentou como um projeto praticamente infilmável. A imobilidade do personagem principal trazia dois obstáculos praticamente insuperáveis. O primeiro seria como transmitir ao espectador, da forma mais real possível, as sensações de um paciente vítima de AVC. Filmá-lo da forma tradicional, em terceira pessoa, não só reduziria o efeito desejado como faria com que a obra corresse o risco de virar daqueles rotulados como “doença da semana”. Em segundo lugar, o roteiro teria o desafio de transformar as incontáveis repetições das letras do alfabeto em algo não monótono para a platéia.

O primeiro deles foi resolvido com a ousada opção do diretor Schnabel de filmar uma boa parte da obra em câmera subjetiva. Durante os primeiros quarenta minutos (mais de um terço do filme), o espectador assume o ponto de vista de Bauby. A câmera, tal e qual o olhar, movimenta-se apenas lateralmente, realçando a paralisia do protagonista. A nós não é dado o direito de ver nada além daquilo que se encontra no campo de visão do personagem. Informações adicionais são complementadas com a voz em off de Bauby. Não me recordo de ver no cinema um retrato tão preciso da sensação experimentada por um deficiente físico, incluindo aqui obras como Meu Pé Esquerdo, O Homem Elefante e Mar Adentro.

O artifício funciona duplamente. De um lado, a câmera subjetiva nos iguala ao protagonista. Queremos perguntar ao primeiro dos médicos, o porquê da sua recusa em enfrentar o olhar do paciente, como que não acreditando na própria promessa de recuperação; queremos descobrir o motivo pelo qual esse mesmo médico, minutos depois, parece se esconder assustado atrás do neurologista que anuncia a extensão do derrame; queremos gritar com a enfermeira que desliga a televisão na hora de uma partida de futebol; queremos rir com o humor negro dos instaladores do telefone sem fio; queremos pedir o fim dos domingos, quando o hospital permanece deserto e Bauby é obrigado a conviver com a sua solidão. Mas sabemos que, por assumirmos o ponto de vista do personagem principal e termos consciência de que ele não pode falar, também nos sentimos impotentes. Estamos igualmente paralisados. 

De outro, o recurso colabora na construção do arco dramático da história, fundamental para a segunda metade do filme. Mesmo sendo informado por intermédio de alguns flash-backs que Bauby não era propriamente um santo, o espectador é levado a se interessar pelo seu destino e a torcer por ele (o que, a rigor, implica em torcer por nós mesmos). Quando a narração em primeira pessoa é descartada (não por completo), passamos a ver Bauby de fora, como um terceiro que com ele está interagindo. Mesmo localizado em uma posição supostamente mais confortável e de superioridade em relação ao personagem, o espectador é incapaz de perder de vista a intensidade daquela triste experiência.

O segundo desafio do filme foi conseguir tornar palatável o monótono e quase interminável processo de repetições das letras do alfabeto durante a elaboração do livro. Nesse ponto, Schnabel faz uso de uma montagem mais acelerada e do pensamento do protagonista, como se ele estivesse ditando as frases à interlocutora, que é vista anotando num caderno cada uma das letras escolhidas. O mecanismo faz o filme avançar de forma bastante fluída e eficiente, ainda que ele implique numa certa edulcoração do lento e desgastante trabalho de criação de Bauby.

Nas poucas vezes que o foco da história se afasta do hospital, somos convidados a conhecer, em rápidos flash-backs, a vida de Bauby antes do derrame. Percebemos que sua relação com as mulheres não é das mais profundas. Mantém um contato distante com a ex-esposa (que, apesar disso, se revela extremamente fiel na hora da doença) e um conturbado romance não resolvido com Inês, a namorada da vez. Da mãe, já falecida, lembra-se vagamente. Com o pai (Max Von Sydow), nutre uma sutil e silenciosa disputa, revelada na seqüência em que Bauby faz a sua barba. Ele mira-se no espelho para avaliar o resultado do trabalho. Passa a mão pelo queixo, bochechas e têmporas. A visão refletida de seu rosto divide o espaço no vidro com uma foto do filho. O pai diz: “Meu Deus! Já não se fazem mais homens como eu!”. Na mesma seqüência, o pai entrega algumas pistas daquilo que poderia estar por trás das dificuldades de Bauby relacionar-se com o sexo feminino. Ao censurar o filho por ter se separado da esposa por causa de uma amante, ele dispara “Ninguém teve mais aventuras amorosas que eu. Bom, sim, talvez Casanova. Ter uma amante não é motivo para abandonar a mãe de teus filhos. Não há mais valores hoje em dia”.

O Escafandro e a Borboleta rendeu vários prêmios a Julian Schnabel, entre eles o Globo de Ouro, o Indepedent Spirit Award e o de melhor diretor em Cannes. Não cheguei a ouvir seus discursos de agradecimento, mas em todos eles Schnabel deveria dedicar algumas palavras ao fotógrafo polonês Janusz Kaminski. Muito da concepção visual do filme é deve ser creditada na sua conta. Homem de confiança de Steven Spielberg, com quem trabalha desde A Lista de Schindler, Kaminski optou pelo uso das cores mais variadas e fortes possíveis. Todas as paisagens em torno do hospital, como a praia e o mar, são fotografadas em tons brilhantes, vivos. Além disso, ele lançou mão de uma série de instrumentos técnicos para que o recurso da câmera subjetiva atingisse o máximo do seu efeito. Assim, para retratar a sensação de Bauby ao retornar do coma, Kaminski desfoca a imagem. Para simular o piscar de olhos, ele fecha e abre o diafragma da câmera. As lágrimas são simuladas com a lente se tornando turva. Sem cair em exageros ou maneirismos, o artifício impressiona, tanto do ponto de vista estilístico quanto dramático.

Quanto ao elenco, Mathieu Amalric traz uma das melhores interpretações do ano. Apesar de já possuir uma vasta filmografia, ele é ainda pouco conhecido no Brasil. Na França, é famosa sua parceria com o diretor francês Arnauld Desplechin, com quem já realizou quatro filmes. O último deles, Reis e Rainha, lançado em 2005, conseguiu furar a barreira imposta pelo domínio das produções norte-americanas e ter certa visibilidade em nosso circuito. Não é difícil afirmar que se o filme fosse falado em inglês, o nome de Amalric estaria entre os finalistas do Oscar. O restante do elenco também não fica para trás. Dada a opção de se filmar boa parte da história com a câmera subjetiva, os demais atores que interagem com o personagem, apesar de coadjuvantes, ganham enorme importância. Dentre estes, destaque absoluto para Marie-Jose Croze, vista por aqui em As Invasões Bárbaras e pelo qual recebeu o prêmio de melhor atriz em Cannes em 2003, e Max von Sydow. Pertencem a eles dois dos melhores momentos do filme.

Sem medo de errar, O Escafandro e a Borboleta é um dos dois ou três melhores filmes produzidos no mundo em 2007 e certamente estará entre a nata dos que serão exibidos no Brasil em 2008.

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