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Críticas

Cineplayers

Reviravolta de vozes

8,5

O cinema reverbera coletivamente tanto quanto no indivíduo específico, e Eliza Capai entrega em Espero tua (Re)Volta algo que ultrapassa o conceito filmico. Para além da potência do dispositivo utilizado e esgarçado até responder a maior parte das questões levantadas, o (belo) filme parece interagir com a consciência coletiva e agregar à disputa de olhar sobre um mesmo ponto de vista em um momento tão desgastante. Reside nesse que é o terceiro longa de Eliza a urgência e o incômodo necessários para conceber uma obra, mas vai além: essa urgência e esse incômodo não são exclusivos dela, mas de grande parte da sociedade e de muitos de seus colegas, que carregam a inquietação já naturalmente, aqui agregando a um debate sobre uma multiplicidade de lugares, de políticas, de impulsos, partindo de eventos específicos para traçar um painel sobre a juventude sem privilégios, sua forma de se comunicar e seu posicionamento.

Em Eleições e principalmente Escolas em Luta (respectivamente filmes de Alice Riff e Eduardo Consonni, Rodrigo Marques e Tiago Tambelli), há um ato de debruçar-se sobre a vida acadêmica dos jovens de periferia através de viezes diferentes. Enquanto Riff trata da eleição de um grêmio em escola pública, o trio formado por Consonni, Marques e Tambelli mostra a ocupação das escolas públicas durante a tentativa de desmonte de quase 100 delas no estado de São Paulo em 2015. O nascimento de uma consciência política é notável em ambos os filmes, que seguem uma classe juvenil disposta a elevar suas conquistas e batalhar por seus direitos. Se já entramos no longa de Eliza tendo ciência da dimensão do poder que emana da adolescência periférica hoje, o filme trata de estabelecer esse parâmetro na vida pública e também no que diria respeito à produção, tomando pra si o protagonismo sobre seus corpos e vozes, amplificando seu lugar.

Marcela, Nayara e 'Koka' vieram de origens diferentes para disparar seu arsenal particular na direção da direção, que precisa adaptar suas diretrizes ao carisma e a amplitude que seus rostos hoje exalam. Eles foram figuras centrais das ocupações escolares de 2015, mas fazem questão de serem ainda mais. Donos de si, os três encampam o longa e Eliza acata o que sua própria narrativa começa a exigir - um filme sobre a juventude excluída precisaria incluir muito mais que seu olhar. Teria que contar suas histórias do seu próprio ponto, teria que se dobrar a sua linguagem, teria que respirar o mesmo ar. Eliza sai ilesa da tarefa de unir três personalidades tão fortes e marcantes sem jamais perder a assinatura; uma espécie de autoralidade compartilhada.

Os três jovens passeiam pela História política recente do país, de 2013 pra cá, se colocando dentro do jogo que conseguimos observar, que inclui manifestações, lideranças estudantis e que desembocam no atual estado (anti?) democrático brasileiro, e como o lugar sem qualquer privilégio deles reflete no tratamento que a sociedade dispensa a quem está nesse lugar, e em como assumir o protagonismo de suas trajetórias é definidor do lugar onde se pretende estar atualmente. Com ou sem sutileza, suas vivências explicam sobre como ser pobre, negro e/ou LGBTQI+ é um carimbo na pele que você não escolhe estampar, mas que existem maneiras menos subservientes de se portar. Subvertendo o espaço que teriam, os meninos arrastam o protagonismo que já os fez quem são até o filme.

A montagem da própria Eliza e de Yuri Amaral é uma síntese do modo como ler essa própria subversão, situando o vasto material que se tem sobre as ocupações e manifestações que Nayara, 'Koka' e Marcela protagonizaram em um ambiente onde suas existências sejam da mesma estatura que os eventos retratados. Sem perder o foco do sentido macro que está na pauta principal do filme, Eliza Capai tem a coragem e a sensibilidade de entender que essa luta armada entre Estado e juventude passa pela cor de suas peles e pelo lugar de onde eles vêm com tanta força quanto suas reivindicações, e se alimenta de ambas. Uma experiência casada de envolvimento que tanto justifica seus lugares de fala como introduz à dialética política filmada um dado humanista de tentativa de aniquilamento dessa mesma humanidade, que sai fortalecida porque entende a amplitude de sua atitude. 

Filme visto no Cine PE 2019

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