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Estou Pensando em Acabar Com Tudo

(I'm Thinking of Ending Things, 2020)
6,6
Média
92 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

Brilho eterno de uma mente com lembranças

8,5

Baseado no livro de Iain Reid considerado infilmável, Estou Pensando em Acabar com Tudo (I'm Thinking of Ending Things, 2020) chega hoje à Netflix provando por que Charlie Kaufman adaptou "O Ladrão de Orquídeas", transformando-o no Adaptação (Adaptation, 2002) de Spike Jonze. Cultivando a fama de desconstruir os subterfúgios no qual a mente humana pode se embrenhar, seu novo filme parece um texto original seu, de tão a sua cara que tem. Por trás de uma curta viagem de carro, podem se esconder os questionamentos de uma vida inteira - se vivida ou não, importa pouco. Em determinado momento, a protagonista interpretada por Jessie Buckley (de As Loucuras de Rose) diz pra si mesma que muitas vezes o que se passa pela mente pode ser tão real (ou mais) que as ações que cada um realiza.

Assistir a Estou Pensando em Acabar com Tudo, diferente do que será dito constantemente com certeza entre cinéfilos, não é uma prova de fogo, não exige máxima atenção, nem é uma esfinge impossível de decifrar. Repleto de pistas explícitas dadas ao longo da narrativa que inclui grafar na tela o nome de um diretor-chave, o filme se debruça sobre uma viagem física para retratar uma outra, muito mais profunda e desenrolada muito mais no interior do que no exterior. De aparente alusão a uma espécie de cinema naturalista em encenação, a produção que se entremeia do presente palpável até as reflexões em off que transmitem o oposto do que é dito, desde essa sequência inicial é jogado para o espectador que duas vertentes narrativas serão seguidas; ou inicialmente apenas em duas. 

Assim, sendo um filme escrito e dirigido por Kaufman, não é nenhuma descoberta surpreendente que tudo que acontece no físico reflita outros campos de entendimento. Em exercício de permanente e crescente subjetividade, o filme se interessa em mais de uma forma de ler as atitudes dos personagens - não demora para observarmos que entre essas diferentes áreas de aproximação à sua narrativa está a diminuição da importância da cronologia, do enfoque tradicional clássico-narrativo, e o que parecia uma peça que lide com o naturalismo não descamba necessariamente para o seu extremo oposto (o artificialismo), porque o filme entende que a leitura humana é muito mais complexa do que os conceitos tradicionais ensinam, na arte ou mesmo na vida.

Com um campo aberto de possibilidades para acompanhar a relação entre um casal a partir de um curto deslocamento espacial, Kaufman literalmente faz o que bem entende com seu roteiro mas para além da superfície sinuosa de suas curvas acentuadas, se és esconde um estudo de personagem (personagens?) dos mais ricos, pois não abarca apenas um ângulo único para observar um quadro que não é pequeno nem simples, sabe-se; é como se o espectador fosse ler um antigo diário da vida de alguém, escrito num caderno que perdeu a mola lateral. O fascínio que o diretor sempre emprega no ato de construir seus avatares complexos de psicologia e sentidos enriquece sempre o todo, olhando por qual lado for.

Isso não significa que Estou Pensando em Acabar com Tudo é uma sopa de letrinhas onde cabe a criação de qualquer jogo de palavras. Mas que uma leitura fixa e com camadas ralas e desconectadas nunca nem fez o gênero de seu autor, e não foi agora que ele mudou. Dá pra dizer sem revelar mais do que já foi explanado no texto que ele não mudou seu foco de interesse desde Quero ser John Malkovich (Being John Malkovich, 1999) e que pra ele a vida dos outros é complexa demais pra caber num diagrama engessado e caduco, e que talvez ele tenha chegado num ponto da carreira onde lhe interesse dar voz ao que já foi vivido - e isso faz com que seu novo filme se comunique demais com Sinédoque, Nova York (Synecdoche, New York, 2008), seu primeiro e subestimado filme como diretor.

Com a luz de Łukasz Žal (de Ida e Guerra Fria) a tratar os ambientes num mergulho cada vez mais profundo em diferentes camadas de um momento (um?), Kaufman rege um quinteto em estado de graça - não há como definir o melhor entre Jessie Buckley, Jesse Plemons, Toni Collette, David Thewlis e Guy Boyd. É uma ópera regida por um maestro que conhece muito bem sua partitura, mas executada com igual entrega qualitativa por cada membro. Kaufman segue com muita coerência em sua essência, na sua articulação sobre a psiquê humana e aqui, no limiar do terror, mais uma vez oferece a face da empatia e da emoção ao brincar com seus novos títeres. 

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