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Estranho Caso de Angélica, O

(Estranho Caso de Angélica, O, 2010)
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Sobre a imagem em movimento.

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Em determinado momento de O Estranho Caso de Angélica (idem, 2010), lembrei-me de algumas considerações de André Bazin sobre a ontologia da imagem fotográfica feitas em um texto onde ele traça um panorama das artes plásticas, desde as múmias egípcias até o advento e firmação da fotografia. O ato de embalsamar configurava uma tentativa de vencer o tempo, de tornar perene o objeto (corpo). A evolução das artes plásticas, paralela à das civilizações, no entanto, fez com que a ilusão, esse sentido mágico a que, entre outros, os povos do Egito se apegaram, cedesse espaço a diferentes processos de perpetuação: a pintura e, posteriormente, a fotografia. Agora, a imagem não mantém mais o ser palpável à espera de uma nova encarnação, e sim em uma instância autônoma. Essa imagem, portanto, não serve mais ao desejo do homem de sobreviver mantendo-se neste mundo; ela passou a servir a um universo metafísico, a lutar através das nossas lembranças contra uma segunda morte espiritual.

No filme de Manoel de Oliveira, que se passa na década de 50, Isaac (Ricardo Trêpa) é um fotógrafo que em uma noite chuvosa é chamado para fotografar o cadáver de uma linda jovem chamada Angélica (Pilar López de Ayala). Ao começar a tirar fotos da moça, que se mostra tão serena e sorridente como se não estivesse realmente morta, Isaac se assusta, pois através de sua objetiva a vê abrir os olhos. Esse acontecimento se torna o ponto de partida de sua obsessão pela bela que ali jaz, e as lentes de sua câmera, o portal pelo qual adentramos o universo assombrado por ela e de onde não se pode retornar.

A imagem (espírito) de Angélica persegue Isaac durante o filme inteiro, chamando-o para junto de si. Gradualmente, o fotógrafo vai se distanciando de seu mundo – fato que é percebido pela senhora Justina, a dona da pensão onde vive. Sua atração por Angélica dominará seus sonhos e fará de sua vida acordado uma espécie de itinerário dividido com tableaux vivants, já que Oliveira faz questão de nos dar tempo mais que suficiente para apreciarmos cada um de seus belos e meticulosos enquadramentos, nos quais as personagens muitas vezes permanecem praticamente imóveis. São muitas as cenas nas quais percebemos uma articulação calculada nos gestos dos indivíduos presentes, cada um esperando pacientemente pelo seu turno nas conversações.

O Estranho Caso de Angélica é, dessa forma, um filme feito para a lenta degustação do espectador, pois há um rigor em cada plano que faz com que voltemos nossa atenção aos detalhes quase completamente estáticos concebidos pelo português: ou quando as personagens estão à mesa na pensão de Justina; ou nos segundos quase eternos em que o gato da mulher contempla um pássaro na gaiola; ou até mesmo quando a câmera fixa-se diante de um aquário. Um de seus momentos mais fascinantes  é aquele em que Isaac, depois de saber que o pássaro de Justina acabara de morrer, sai – estranha e desesperadamente – correndo e gritando o nome de Angélica. Ao passar por duas senhoras, estas permanecem imóveis e olhando para ele; só depois de um bom espaço de tempo, elas passam a movimentar-se e a comentar sobre o tresloucado homem, que já nem víamos mais e que posteriormente tombaria despertando a atenção de um grupo de crianças que por ali passava.

Oliveira, então, entrelaça, através da noção de imagem, as concepções de vida (movimento) e morte (condição inanimada). Nesse encadeamento imagético, percebemos que o diretor coloca seu protagonista em uma profunda simbiose com sua profissão. Assim, se por um lado observamos uma Angélica falecida animar-se e em espírito interferir na vida de Isaac, por outro constatamos o quão distante vai se tornando a realidade para o fotógrafo – que mal dialoga com as demais personagens. Tentando impelir o chamado da moça, Isaac intercala em seu mural de fotos reveladas imagens da doce fisionomia da loura com a violência dos gestos dos trabalhadores rurais que tanto despertam seu interesse profissional. Mas essa sobreposição de imagens – que tem como fim dissolver pela truculência dos movimentos dos homens que empunham suas ferramentas o poder que emana da beleza delicada da falecida – não é suficiente, e sua obsessão só cresce.

À medida que aquilo que já não mais vive e que está aprisionado em um pedaço de papel vai se movimentando e tornando-se cada vez mais presente para Isaac, aqueles que o cercam vão se convertendo em peças ornamentais do grande quadro pintado/fotografado por Oliveira diante de nossos olhos. Percebemos, perante o gosto indiscutível do português por frames em geral, que há em muitos elementos o reflexo do princípio da elaboração cinematográfica, que é pautada justamente na imagem em movimento. Por isso, há um ponto de convergência entre a morta que se move e os vivos que se estagnam. Todos ali de alguma forma pertencem ao universo das imagens, da fotografia, do quadro etc.

Portanto, o que foi dito por Bazin sobre a função da imagem de tentar não permitir uma segunda morte (espiritual) é retomado pela ótica de Oliveira, que nos deixa a refletir sobre a relação de necessidade existente entre os protagonistas, pois Angélica, que carrega no próprio nome a palavra anjo, tenta levar Isaac consigo; este, por sua vez, parece sentir sua presença e está sempre à sua procura, ou melhor, à procura de seu espírito, que abandona o corpo fotografado e deixa-nos cientes de sua “sobrevida”.

Spoilers: Quando Isaac finalmente morre e seu espírito vai ao encontro definitivo de Angélica, dona Justina fecha as janelas por (e para) onde o fotógrafo tantas vezes olhava e por onde saiu com a mulher. Oliveira, então, termina seu filme, depois da partida dos dois espíritos, com enegrecimento da tela. Afinal de contas, foi através do olhar (da subjetividade de Isaac) que a imagem da moça morta ganhou vida, e sendo os olhos as “janelas da alma” e estando o rapaz também morto e tendo seu espírito partido em comunhão com o de seu “anjo”, nada mais belo e sugestivo que finalizar com o cerrar dos olhos/janelas, com impossibilidade de apreender – seja objetiva ou subjetivamente – o indecifrável quadro da vida.

O Estranho Caso de Angélica é simplesmente um belo filme cuja temática jamais se enfraquecerá com o decorrer das épocas, pois ela está livre das contingências do tempo, como diria o próprio Bazin a respeito do objeto capturado pela fotografia.

Comentários (4)

Patrick Corrêa | sábado, 28 de Abril de 2012 - 22:08

Queria tanto que fosse lançado nos cinemas...

Adriano Augusto dos Santos | domingo, 29 de Abril de 2012 - 08:29

A geração nova e a vitalidade fizeram muito bem à Manoel,muitos passaram a procurar seus filmes.
E ele é daquela classe Chabrol,Melville,Kim Ki Duk,Sang Soo...os "esquecidos" pelos críticos repletos de tesouros na filmografia.

André Policarpo | domingo, 01 de Setembro de 2013 - 21:50

Me interessei, alguém sabe aonde encontrar???

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