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Farol, O

(The Lighthouse, 2019)
7,8
Média
221 votos
?
Sua nota

Críticas

Cineplayers

Requinte da barbárie masculina

10,0

Experiência dos sentidos, assim poderíamos definir O Farol (The Lighthouse, 2019), novo filme de Robert Eggers. Por trás das chaves que o diretor emprega diretamente do horror, é no mínimo imprudente encerrar suas características a convenções de gênero apenas, sendo esse um filme com muito mais substância a oferecer. Sem entrar em bobagens de teses que já nascem furadas sobre pós isso e pós aquilo, a essência dessa produção a cargo de Rodrigo Teixeira é oriunda das bases do horror na História do Cinema: personagens encerrados em um ambiente progressivamente claustrofóbico duelam pela sanidade de um e de outro, ao passo que horror diário e comum ganha contornos cada vez mais concretos. Ou não. E a partir daí, esse filme especificamente acrescentará a sua dinâmica códigos do cotidiano que formatarão sua lógica.

De construção imagética a remeter aos clássicos do expressionismo alemão, inclusive na decisão de recortar a tela em 4x3 que tanto homenageia os primórdios do cinema como enclausura a dimensão de sua história ao delimitar os horizontes dos seus personagens, O Farol desconcerta as certezas. Da relação tóxica que é estabelecida desde o início entre Willem Dafoe e Robert Pattinson, passando pela construção e manutenção do que são aqueles dois seres antagônicos, a apresentação da ambiência no qual se acompanhará o drama encenado, até chegar nos elementos fantásticos cuidadosamente inseridos na atmosfera por completo opressora, estamos diante de uma obra construída para desestabilizar o entendimento, mas nunca para confundir. As respostas são dadas, mas talvez não sejam as respostas esperadas.

Ephraim é um homem pragmático. Tom é um velho lobo do mar que já não tem nada a perder. Como ao mesmo tempo respeita as regras do gênero e também as subverte em conceitos modernos, Eggers logicamente irá inundar um personagem no outro, borrando os relevos de seus tipos. Se rapidamente uma atmosfera homoerótica se estabelece enquanto desenho climático da ação, é porque suas camadas são ainda mais amplas do que a construção apresenta. Também esse dado é estabelecido e aos poucos investigado por ambos; a masculinidade endurecida na verdade não passa de uma máscara social da época, que o filme rearranja a ponto de conectá-los intrinsecamente, dois homens partidos que elaboram em si uma complementação necessária para conquistar o equilibro das coisas.

Das ferramentas do velho cinema, o diretor intercala referências possantes sem atrelar-se a nenhum outro cineasta em específico, ainda que passeie por tantos; parte da parceria com o fotógrafo Jarin Blaschke, que também esteve em A Bruxa (The Witch, 2015), que aqui desvenda em PB os conceitos do expressionismo para criar um clima de sedução, mistério e gradativo pavor. Seu interesse é ainda mais pelas luzes difusas do lampião no cenário, das repetidas refeições pouco agradáveis aos olhos — alguém cogitou O Cavalo de Turim (The Turin Horse, 2011) , do fascínio que o próprio farol causa em ambos a ponto de sua destruição variar dessa obsessão. Esse mesmo fascínio por uma construção de estrutura fálica é a base para a leitura sobre masculinidade frágil e por isso tão imposta e declarada em ações, sejam elas de desprezo ou admiração ("Você é bonito como uma pintura"). E se no anterior o diretor construía sua narrativa por meio da ameaça ao feminino, sua nova produção é um aríete na direção de todos os aspectos do masculino, até dos imaculados e recônditos.

Encabeçando a arquitetura da semidestruição, Dafoe e Pattinson estão em patamar de difícil alcance por seus pares atores. Conjugando crescente desestrutura mental, devaneios eróticos e violência desesperada, ambos se doam em seus máximos: enquanto Dafoe acessa diversos lugares onde já o vimos anteriormente, aqui amplificados e ressignificados, Pattinson assombra mais uma vez. Depois de surpreender com sua presença nos últimos anos, aqui ele entrega algo muito complexo de construção, pois abriga diversos lados de personalidade, indo de uma passividade dócil até uma selvageria indomável, agravado por um crescente estado de perda de conexão com a realidade.

Robert Eggers entrega assim sua segunda obra, ambas complexas e assustadoras, que redefinem o cinema de horror moderno a um lugar para além da obrigação do jump scare ou de seguir uma cartilha que venha sendo seguida na atualidade. Através de diferentes formas de moldar linguagem cinematográfica e mixá-las a um arrojado trabalho de mise-en-scène cuja proposta ultrapasse o que o mercado espera do gênero, o diretor segue enfeitiçando plateias desavisadas com um requinte fora do comum, muitas vezes disfarçado do mais puro espasmo explícito e, por que não, escatológico.

Crítica da cobertura da 43ª Mostra de São Paulo

Comentários (2)

André Araujo | quinta-feira, 31 de Outubro de 2019 - 10:44

Nossa...desde que saíram as primeiras imagens esse filme fede a obra-prima.

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