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Críticas

Cineplayers

Mito e literatura.

7,0

Anunciado como o quarto segmento de uma tetralogia formada por Moloch (idem, 1999), sobre Adolf Hitler, Taurus (Telets, 2001), sobre Lênin, e O Sol (Solntse, 2005), sobre o imperador japonês Hiroito, Fausto (Faust, 2011) parte da história para a lenda como prosseguimento aos estudos de Aleksandr Sokurov sobre os efeitos e a natureza do poder em torno dos grandes ditadores do século XX (não é difícil pensar em alguns dos diabólicos biografados dos filmes anteriores como versões modernas de Fausto que chegam ao topo de suas ambições e o perdem com a morte ocasionada por um Satã a reclamar por suas almas). O fascínio por figuras icônicas do bem e do mal encerrava alguns desses filmes num fetiche histórico que esses trabalhos nem sempre transcendiam, o que desde o começo ameaça se repetir no filme novo, partindo agora do campo dos mitos e da literatura.

Formalmente, é derivativo de muito que podemos ver no próprio cinema de Sokurov ou de outros diretores contemporâneos que se utilizam de elementos estéticos recorrentes como clichês em festivais internacionais (ganhou o Leão de Ouro em Veneza), com um verniz artístico que salta à vista. Fausto se apresenta com uma cena de abertura de encher os olhos, movida por uma câmera flutuante que passeia pelos céus até alcançar a residência em que o personagem-título disseca cadáveres em busca da alma humana. Por entre vísceras e órgãos genitais inanimados, antes do encontro com o diabo Mefistófeles, aqui representado como o agiota dono de uma casa de penhores, o que desencadeia o processo de sedução que levará ao pacto por sua alma assinado com sangue.

Fausto possui momentos impressionantes (a maioria deles com a estranha aparência humana de Mefistófeles na tela, ou alguns outros com Margarete, que surge em cena como o seu contraste), mas perde e se ressente se comparado a outras das melhores versões com o personagem para o cinema, notadamente o Fausto (Faust - Eine Deutsche Volkssage, 1926) de Murnau, e o Filme Demência (idem, 1986), de Carlos Reichenbach. Sokurov prefere o espetáculo visual em troca de um cinema mais inventivo praticado pelos outros dois cineastas. O que acarreta um peso por vezes incômodo que lhe prejudica o fôlego, confundindo não raro a potência da imagem com afetação visual, e lançando mão de recursos como as visões distorcidas, com deformações de lentes, a fotografia com texturas sépias a cargo do responsável pelos créditos de alguns dos filmes mais infames de Jean-Pierre Jeunet e um dos Harry Potter, e uma câmera fantasmagórica (já não mais novidade em circuitos de arte) que passeia por passagens estreitas, lugares apertados e sufocantes a representar o desconforto de Fausto, mas quase tudo num trabalho de diluição e artifícios, faltando o transcendentalismo de um Tarkovski, de quem é considerado um dos discípulos.

O cineasta busca preencher sua obra com uma atmosfera de mistério, para suprir a ausência de metafísica (um elemento fundamental na história original), e mesmo quem evitar o deslumbramento fácil pode se surpreender com a revisão (ou simples lembrança) de muitos dos trechos de Fausto, que podem revelar grandezas que de imediato e em conjunto passam despercebidas num trabalho tão exarcebado pelo estilo e maneirismos de um realizador auto-centrado em sua estética particular como Sokurov. A emoção não brota fácil e inevitável como diante de Mãe e Filho (Mat i syn, 1997), talvez sua obra-prima, mas somos levados pelos percalços de Fausto, em sua busca sem freios pelo conhecimento, e as figuras que cruzam o seu caminho (com os demônios que afloram à tela), nas ilustrações que Sokurov pinta com seus planos, consequência de um esforço de demonstração nem sempre eficaz em comunicar o sentimento preciso que orienta narrativa e personagens dentro do quadro. Optando não por uma ruptura estética que seria bem-vinda dando novos ares a sua filmografia, mas por uma continuidade em seu até certo ponto conservador projeto de cinema, Sokurov nos entrega um produto que com seus altos e baixos resume toda uma trajetória que o diretor russo tem percorrido ao longo dos anos. 

Comentários (3)

Douglas Rodrigues de Oliveira | domingo, 01 de Julho de 2012 - 17:09

Assisti ontem. Sim, falta um toque de Tarkovski, mas não, eu não achei que Sokurov tenta preencher a obra com mistério, e sim com o uso da religião, ironizando esse tema através de metáforas magníficas, sendo no contexto, sendo no visual, sendo em ambos.

De qualquer jeito um filmaço, não via um produto europeu forte assim desde As harmonias de Werckmeister, mais de uma década atrás!

Rodrigo Torres | segunda-feira, 02 de Julho de 2012 - 08:21

Preciso muito rever esse filme e conferir o do Carlão. 😕

Ademais, ótima crítica de partilho tudo que foi exposto, principalmente quanto ao visual. Achei que Sokurov ficou aquém na exploração do interessante mito de Fausto. Houve uma bela quebra de expectativa sobre o filme - por isso quero tanto rever, e tenho certeza que a nota irá mudar numa segunda visita - para mais ou para menos.

Adriano Augusto dos Santos | segunda-feira, 02 de Julho de 2012 - 11:53

Sokurov é muito convicto no que faz.
Pode até faltar uma força no filme mas o visual e as técnicas são estonteantes.

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