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Críticas

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Além da teoria do gênero.

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Atenção: este texto discute partes da trama, portanto, leia por sua conta em risco.

Robert Stam, em sua Introdução à Teoria do Cinema, escreveu: "A temática é o critério mais débil para o agrupamento genérico, por não levar em consideração a forma como o tema é tratado". Concordo. Logo, como definir um filme que temática e estruturalmente parece caber em um gênero ou, aparentemente, funciona como uma releitura? Femme Fatale (idem, 2002), obra de Brian De Palma que recebeu muitas críticas divergentes, é uma dessas produções cuja classificação é algo embaraçoso e complicado. Seu título evoca a priori o noir, mas o supera; ou seja, apesar de ter tanto em sua estrutura quanto em seus temas elementos do 'gênero', vai além dele e de outras vertentes cinematográficas. A única certeza é que se trata de um filme definitivo daquele que é um dos maiores, para não dizer o maior, da safra influenciada por Alfred Hitchcock.

A primeira cena mostra a estonteante Laure Ash (Rebecca Romijn) assistindo a um filme noir: Pacto de Sangue (Double Indemnity, 1944), de Billy Wilder. A seguir, entra um homem negro no quarto e ambos falam a respeito de uma ação criminosa que será executada durante a exibição de um filme no Festival de Cannes de 2001. Trata-se do roubo dos diamantes que foram excêntrica e sensualmente transformados em uma espécie bustiê que será vestido por uma bela jovem (Rie Rasmussen). Para isso, Laure seduz a moça e, numa impressionante cena de lesbianismo, que é nada mais do que uma reprodução da cena do chuveiro do início de Vestida para Matar (Dressed to Kill, 1980), mostra o vasto leque de habilidades que lhe podem ser úteis.  A ação dos ladrões eleva as qualidades de um De Palma arrojado que, contudo, não se entregou à faina exaustiva de filmes como Missão: Impossível (Mission: Impossible, 1996).

Algo, porém, não dá certo no plano dos três (outro homem negro apareceu) e, para completar, Laure acaba traindo os próprios companheiros e fugindo com os diamantes. Depois de ser confundida com outra pessoa, ela se distancia do mundo do crime, conhece um homem influente e acaba casando-se com ele. Sete anos de intervalo dividem a primeira parte do filme de seu restante, e Laure, que agora é Lily Watts, procura não se expor aos holofotes da imprensa, mas o sagaz Nicolas Bardo (Antonio Banderas) consegue tirar fotos suas. Os dois se aproximam e Nicolas acaba descobrindo que a mulher está elaborando um plano para extorquir 10 milhões de dólares do próprio marido. O envolvimento é perigoso e absolutamente irresistível para o fotógrafo. Nesse sentido, a personagem de Rebecca é extremamente fatal. Entretanto, De Palma usa esse envolvimento para colocar um embuste sobre as reverberações oníricas que serão devidamente encaixadas durante os momentos finais do filme. O aspecto lúdico da narrativa ata ao excepcional trabalho com a profundidade de campo o déjà-vu, palavra-título de anúncios publicitários que tomam a cidade com a imagem de Laure.

Há em Femme Fatale um agrupamento de elementos que não se excluem, de objetos refletidos. Por conseguinte, tudo que aparece diante (ou por trás) das personagens, como os cartazes onde lemos déjà-vu e o relógio da sala de investigação onde Nicolas está depondo, que enigmaticamente marca a mesma hora do relógio que é visto sobre a banheira em que Laure tomava banho sete anos antes, prepara-nos para o final, que vai do feérico puro e mais próximo do inexplicável ao que é inexplicavelmente compreensível partindo do pressuposto onírico. Essa ligação inextricável entre componentes faz das personagens do filme faces distintas de uma mesma moeda que estão, aparentemente, condenadas ao mesmo abismo cíclico. Dessa forma, a narrativa nos faz pensar, antes do desfecho, acerca de seus elementos enquanto parte de um jogo de câmera que só capturou uma história projetada, uma trama que pertence a uma camada diegética que se infiltra naquela que já nos foi apresentada. O que De Palma fez foi mostrar-nos a duplicidade que existe em tudo que faz parte do (seu) mundo. Não é à toa que Laure e Lily sejam idênticas fisicamente, que possuam nomes iniciados com a mesma letra. Quase tudo é duplicado na trama: duas “realidades”; dois homens negros; duas mulheres semelhantes; duas identidades profissionais de Nicolas: o paparazzo e o fotógrafo artístico; a imagem constantemente dividida; outros dois homens próximos ao ataque efetuado pelos dois negros contra a “amiga” de Laure; etc.

Quando Laure é jogada de uma ponte, semelhanças com Um Corpo Que Cai (Vertigo, 1958), de Alfred Hitchcock, não podem ser negligenciadas. Sem falar da existência das duas mulheres. Entretanto, a noção de ícone primordial do diretor mostra-se bastante evidente. Em poucos minutos, Femme Fatale sai de uma referência hitchcockiana, passeia pelo próprio De Palma em Um Tiro na Noite (Blow Out, 1981) e depois volta ao ponto onde tudo começou. Consequentemente, tudo está fadado ao retorno, ao que se repete enquanto imagem. O relógio, por exemplo, é um ícone primordial, um símbolo que parece emergir passível de significações múltiplas; posteriormente, ele se torna um objeto de denúncia onírica de algo já visto (o déjà-vu). Logo, Femme Fatale se entrega enquanto filme já em seus primeiros momentos, mas, como até mesmo o próprio título parece apenas servir de componente preliminar, seu enredo só flui enquanto especulação, sonho, citação, repetição e eco.

O ludismo que se estabelece entre o real e o falso é componente da publicidade do filme. Percebe-se que a mulher fatal, que a todos seduz e que faz qualquer coisa para conseguir o que quer, só age, de fato, no sonho, porque Laure acaba tornando-se uma heroína, aos moldes clássicos, e criando um novo final. O noir carrega consigo algo de trágico, algo que quase sempre acaba mal. A personagem do noir, não raro, é tomada pelo descomedimento, pelo que os gregos tragediógrafos chamariam de hybris, que é o impulso incontrolável gerador das maiores desgraças - como a morte, por exemplo. Femme Fatale bebeu do noir, mas não se limitou a ele e não seguiu sua cartilha à risca. Trata-se de um filme cuja reviravolta se aproxima do desfecho aberto e apocalíptico de um dos grandes representantes do gênero no cinema:  A Morte Num Beijo (Kiss Me Deadly, 1955), de Robert Aldrich. A diferença é que na obra de De Palma existe, ao final, o dia, que é um elemento catártico e enternecedor. Assim, o diretor elaborou uma narrativa esteticamente valiosa que não se traiu em momento algum e que deixou bem claro que as referências que sempre foram o corpus de seu trabalho não se esvaíram, simplesmente se tornaram “escorregadias”.

Neste filme, a união de gêneros e imagens criou, através do intertexto, um exercício de linguagem cinematográfica que, com toda certeza, está entre os mais brilhantes deste início de século XXI. Brian De Palma mostrou novamente que sua obra sempre se autodefine e fica à espera de múltiplas interpretações. Femme Fatale, que distribuiu seus elementos em sua primeira parte e, na segunda, os rearranjou perfeitamente no campo (meta)físico do déjà-vu, é uma obra singularmente elaborada e inclassificável, que colocou o futuro no presente e que, como poucas, subverteu todas as expectativas. Este De Palma, por alguns considerado menor, é um trabalho sincero que remonta ao conceito original de símbolo: aquilo que um dia foi dividido e em algum outro momento voltou a se unir.

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