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Críticas

Cineplayers

Neville D´Almeida emerge do ocaso com um retrato da imundície moderna.

9,0
Neville D´Almeida nasceu como cineasta no submundo da produção brasileira dos anos 70, começando a carreira à margem até mesmo de cineastas malditos e marginalizados - ainda que geniais - como Rogerio Sganzerla e sua turma da Belair. Ainda que tenha bebido na fonte do mesmo cinema da boca do lixo paulista, Neville construiu sua carreira ao largo também desse grupo e rapidamente explodiu com a adaptação de Nelson Rodrigues A Dama do Lotação, deixando claro que a marginália também estaria na frente de sua lente. Se especializaria na radiografia dos desgarrados, como se observasse a si mesmo nesses tipos rotos de alma, mas cujo carinho dispensado por ele chega ao ápice agora, com essa transposição para as telas do texto teatral de Mario Bortolloto.

Neville parece apaixonado por seus personagens, todos eles, por maior que seja seu nível de sarjeta. E mais uma vez (como em Rio Babilônia) ele vem mostrar a intersecção entre uma elite nas raias da podridão e o seu próprio entendimento de laia, personificada em Amsterdam. Por mais que o filme seja povoado por tipos como Gru, Cris, Espeto e tais, todos com delineamento apurado e aprofundamento psicológico, é sobre uma enigmática personagem que Neville e Bortolloto resolvem jogar luz e interesse maior, transformando-a na porta-voz do filme; por ela passa o discurso, a subversão, o caráter escroto e a responsabilidade de transformar A Frente Fria que a Chuva Traz no que provavelmente deva ser o melhor longa do diretor.

Antenado com o universo atual e sem jamais perder a conexão com sua própria linguagem e tradição, D´Almeida entrega um excepcional novo exemplar da fauna "dalmeidiana" enquanto se comunica de maneira exímia com o cinema de Larry Clark e Harmony Korine, em especial o petardo Spring Breakers. Com fontes tão intensas para beber e se refastelar, o cineasta não só parece rejuvenescido e moderno como sua atualidade chega na própria qualidade técnica de seu produto, de montagem nervosa e fotografia que sabe bem quando esquentar e quando esfriar suas luzes, além do genial trabalho de mash-ups na trilha sonora. A impressão com o resultado final é de que D´Almeida em tempo nenhum tenha ficado descansando durante esses 18 anos sem filmar, pelo contrário; como um exímio observador do que acontecia à sua volta, o filme parece feito com uma endiabrada alma juvenil e questionadora, com posicionamento de câmera requintado e estiloso, sem jamais parecer vazio e gratuito.

Aliás, se tem algo que definitivamente Frente Fria não é, é vazio. Através de Amsterdam, o filme chafurda na lama ao mesmo tempo que zomba da juventude perdida e escrota de hoje, tão destituída de moral e propósitos que invariavelmente essas pessoas se verão falidas durante o único dia que o filme os acompanha, praticamente sempre graças às intervenções da própria Amsterdam, um misto de prostituta, anjo caído, arauto do caos e único ponto de sapiência de um grupo repleto de nojeira pra onde quer que se examine. Num grupo tão coeso de atores maravilhosamente envoltos em coloquialidade e naturalismo (de onde emergem um Michel Melamed como um sertanejo hypado e fútil, e Johnny Massaro como o mecenas de uma festa na laje de uma comunidade), é Bruna Linzmeyer que abraça sua Amsterdam e sai do filme direto pra antologia do cinema brasileiro. Não há sequer um momento seu onde sua boca abra e não saia dela uma chicotada, numa interpretação tão avassaladora que o recomendado é que o filme seja visto mais de uma vez somente para centrar olhos em Bruna. Sua entrega é tão especial quanto a força de sua personagem e a importância que aquela mulher tem como força motriz dos acontecimentos desse dia, uma tarde que antecede esse evento para riquinhos em comunidade carioca, onde todos terão sua dose de verdades socadas goela abaixo, antes e durante a tal festa.

No fim parece esquisito imaginar que Neville D´Almeida ficou 18 anos para entregar um filme novo... até por conta do sucesso de público (e só) do anterior Navalha na Carne, fica difícil entender porque o cinema o abandonou, e o cineasta tem mágoa suficiente dessa situação a ponto de usar exatamente essas palavras para descrever seu ocaso. Mesmo só tendo emendado um filme no outro nos anos 70, onde reside metade de sua filmografia, é inexplicável que alguém com alguns blockbusters na carreira tenha desaparecido, justamente por ter sido abraçado pelo público com seus filmes sem qualquer pudor. Mas a reviravolta que Frente Fria dá em tudo que está por aí (inclusive no bom mocismo do nosso cinema, com um linguajar deliciosamente chulo e real) e o modo como seu diretor parece ter se preparado a vida inteira para ele, parece dizer que tudo valeu a pena. Também é essa a sensação no término desse que pode ser encarado como o grande comeback cinematográfico de 2016.

Comentários (4)

Josiel Oliveira | segunda-feira, 02 de Maio de 2016 - 15:24

Michel Melamed (roteiro), Mario Bortolotto (peça)... interessante hein.. assistiria

Alexandre Koball | terça-feira, 03 de Maio de 2016 - 08:12

Também vou assistir quando houver oportunidade.

Daniel Mendes | quinta-feira, 06 de Outubro de 2016 - 12:19

Achei ABSURDAMENTE ruim.

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