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Críticas

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Ainda que seja mais um filme de amor, A Fronteira da Alvorada é um veemente manifesto por um cinema mais puro e artístico.

8,0

Se existe um tema de inesgotáveis abordagens por todas as formas de arte, sobretudo pelo cinema, este é certamente o amor. Talvez por tratar-se do sentimento mais intenso e representativo da condição humana, ou mesmo por ser o de mais fácil identificação e apelo, o amor jamais deixou de marcar presença nas telas. É interessante notar como desde a mais banal comédia romântica de Hollywood ao cinema de arte europeu contemporâneo se valem da mesma matéria-prima. A Fronteira da Alvorada é um filme que certamente se situa no segundo time.

Produção francesa dirigida por Philippe Garrel em 2008, traz justamente uma tórrida trama de amor que envolve paixão e adultério, com direito a ótimos e impagáveis diálogos sobre o tema. François (Louis Garrel), um despenteado jovem fotógrafo, é contratado por uma também jovem, porém famosa e bela atriz recém-casada com um cineasta que trabalha em Hollywood, chamada Carole (Laura Smet). Desamparada e carente, em meio a uma sessão de fotos e algumas trocas de olhares, nasce um relacionamento amoroso que será o mote de todo o filme. O que fazer quando o marido voltar? Haverá amor quando a dificuldade vier à tona? Juras de amor duram para sempre?

Apesar da aparente trivialidade inicial, A Fronteira da Alvorada, para os padrões do cinema atual, distancia-se com veemência do cinema comercial, de apelo popular e de pirotecnias tecnológicas. Não que seja um filme difícil de entender, muito pelo contrário, é uma obra de grande potencial de identificação, oferecendo uma história em que o espectador tem chances de se sensibilizar, uma vez que é uma bela abordagem de um tema universal. O fato que torna o filme único reside nas opções do diretor que fazem do filme um verdadeiro manifesto pela pureza do cinema enquanto obra de arte.

Pra início de análise, o filme é todo em preto e branco. Em tempos atuais de “democratização digital” do cinema, não há como não se deixar levar pelo romantismo retrô da película, numa projeção onde os mais puristas irão se deliciar com imagens em que pode-se até sentir os grãos de prata da emulsão fotoquímica, estes que por sua vez formam as visões de um artista do cinema projetadas na tela. Tal como o protagonista, um fotógrafo que trabalha com filmes analógicos e máquinas fotográficas antigas, como o lendário modelo de câmera de médio formato “Rolleiflex”, da fabricante alemã Rollei, o filme opta por uma estética vintage, por uma recusa idiossincrática às tendências digitais dos novos tempos - nesse sentido, nota-se uma metalinguagem entre o trabalho do personagem e o próprio oficio do criador do filme em si. Até pelo próprio enredo, onde o marido (representando Hollywood) é deixado de lado e trocado por um fotógrafo francês saudosista, a trama sugere que o verdadeiro, o artístico e o intenso não está no espetáculo, nas cores e na computação gráfica, mas sim no intimismo, na busca pela melhor incidência de luz e enquadramento.

A Fronteira da Alvorada é um filme de fotógrafo. Seu maior mérito está nas cuidadosas composições de quadro, na arquitetura do plano, seja na busca por angulosidade nas tomadas em ruas, ou pelo perfeito enquadramento do rosto humano retratando profundos e ambíguos sentimentos. O sofisticado planejamento da incidência da luz, ora gerando mais contraste, em outros momentos maior difusão, fazem com que cada imagem deste filme se pareça vinda de um still fotográfico. Existem também outros atributos, como diálogos imperdíveis, em que dois amigos esmiúçam a teoria do limpador de pára-brisas: “O amor é como os limpadores de pára-brisas do carro. Quando um vai atrás, o outro corre. Quando é o outro que vai em busca, o primeiro se afasta.”

As constantes indagações de Carole sobre o que de fato é o amor, quanto tempo ele dura e a legitimidade das promessas e juras são outro ponto forte deste filme, tão fundamentado em diálogos e desempenho de atores. “Me amará depois que eu tiver doente, enlouquecida?” Passíveis de discussão (inclusive como apontamento de fator negativo), são algumas atitudes precipitadas e repentinas dos personagens, até mesmo inexplicáveis, gerando reviravoltas supreendentes e por vezes pouco verossímeis. No entando, é uma particular escolha do realizador. Há também, inegavelmente, como o espectador certamente irá notar, um forte tom shakesperiano na trama, até pela constante menção a ideia de que amor verdadeiro apenas consuma-se além da vida. Pode-se vislumbrar também no filme uma atualização dos temas da mitologia grega, como o mito de Eros e, principalmente, de Tânatos (ou "Thanatos"). Cinematograficamente, uma sutíl repaginada em temas que já estavam presentes no cinema em 1927, como em Aurora - até pela própria coincidência dos títulos.

Casos extraconjugais, onde inicialmente há uma busca por sexo sem envolvimento afetivo e sem perguntas, mas que descamba para a ameaça das amarras convencionais da “vida burguesa”, é um tema que já fez escola no cinema. O Último Tango em Paris, filme de 1972 dirigido pelo italiano Bernardo Bertolucci, é tido como um dos principais a iniciar a chamada “tendência erótica” no cinema de arte que persiste no cinema atual. O filme Intimidade, de 2001 dirigido por Patrice Chéreau, é outro grande exemplo desta linhagem de filmes, que definitivamente encontra o seu representante atual em A Fronteira da Alvorada. Estranho usar o termo “atual” para um filme que, em todos os sentidos, é uma busca por uma essência atemporal.

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