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Críticas

Cineplayers

Cinema de multidões.

8,0

Fruto de extensa pesquisa da diretora Claire Simon que também rendeu o documentário também desse ano Geografia Humana (Géographie humaine, 2013), Gare du Nord (idem, 2013), nome de uma famosa estação ferroviária francesa, apresenta de maneira quase observativa e utilizando muitos diálogos reais as histórias de quatro personagens – uma professora doente, um estudante de ascendência árabe, uma corretora que vive distante da família e um comediante que procura a filha que fugiu de casa – que se relacionam de forma frágil, sendo protagonistas de quatro histórias que começam e acabam por lá todos os dias.

Confinado na estação, o filme tem pouco respiro fora do mar de pessoas, os esconderijos não tão escondidos assim, a introspecção em público; Simon cria em um filme de externas uma atmosfera por vezes sufocante e desesperada, onde seus personagens estão inseridos em um contexto vagante e incerto onde a câmera vaga em travellings intensos e movimentados, até o desenho narrativo que permite a criação da introspecção, dos closes, do silêncio, em um ambiente mutante como a própria França.

A premissa de “geografia humana” expressa em ficção e documentário testemunham conflitos e problemas de tribos, etnias, gêneros, classes sociais e classes operárias e uma transformação constante, onde novos e velhos valores vivem paradoxalmente em um filme vivo e de força vibrante. Nada melhor para representar isso, portanto, que um centro em constante metamorfose, a cada dia e a cada minuto, expressando mil e uma preferências estéticas, costumes sociais e momentos históricos.

A já veterana Simon, que ganha junto com as duas estreias também uma retrospectiva no Festival do Rio, está na ativa na direção desde Les Patients (idem, 1990), mas já tendo trabalhado nas décadas de setenta e oitenta como roteirista e editora, dedica-se a um cinema híbrido onde criação e registro são interdependentes, onde a recriação no universo da ficção e a composição da misé-en-scene são postas no mesmo lugar onde se registrou a fauna.

A estrutura de múltiplas tramas (ou coral), onde nenhuma predomina sobre a outra mas antes coexistem são mais que simples comentários e panoramas. Todos os seus quatro protagonistas compartilham de angústias particulares, tratadas com intimidade e não apenas como objeto de estudo impessoal para sua diretora: todos eles estão lutando contra a solidão, lutando contra uma rotina massacrante, pulsando tanto de desejo sexual quanto de agitações políticas, o que sempre os faz voltar para aquela estação, onde seus grandes espaços, grandes portões e trens partindo guardam dramas particulares em si, onde o microscópio quebra a macroestrutura em um gigantesco mosaico disforme.

Do tanto que suas tramas se alternam entre si de maneira fluida, Gare du Nord passa a impressão de ser até um filme maior do que realmente é; seus dramas, de início simplórios, vistos como curiosidade, acabam desenvolvendo importãncia cada vez maior apesar de nunca explodir, propriamente, em imagens. Mesmo momentos onde uma estação superlotada é interrompida por um protesto médico, o olhar da diretora invade os espaços escuros, captura os rostos sempre à procura de alguém, sempre à espera, sempre com algo a fazer. Essa incompletude torna os personagens presos em sua liberdade e mobilidade. Estão perto de todo mundo, mas nunca estão perto de ninguém realmente. E não à toa, os poucos momentos íntimos sejam os mais ternos ou os mais tristes do filme.

O deserto superpopuloso de Simon só respira de verdade quando a multidão olha para o lado, incomoda ou questiona o outro. É assim que se arranca da impessoalidade, que se entra na subjetividade, que se identifica com a corrida algo infundada que a câmera de Gare du Nord acompanha tão precisamente, sempre tão perto de maneira incômoda em suas muitas histórias, muitos olhares, muitas camadas, muitos lugares. O compromisso de Gare du Nord é claramente em tornar o objetivo subjetivo, em transformar multidão em indivíduo, de observar a consciência e transformação de cada um que forma não um todo, mas muitos deles. Tal qual o cinema.

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