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Garota da Pulseira, A

(La fille au bracelet, 2019)
7,2
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Críticas

Cineplayers

A importância da narrativa

7,0

Alguns filmes de tribunal apelam à nossa humanidade, como 12 Homens e Uma Sentença e O Sol é Para Todos. Outros mostram a busca por uma narrativa que faça sentido, como Anatomia de Um Crime, ou como essa narrativa pode ser maliciosa, como em O Processo de Joana D'Arc. E para Stéphane Demoustier em seu terceiro filme, A Garota da Pulseira, a verdade não é nada mais que uma história muito bem contada - como um filme.

A Garota da Pulseira (uma tradução confusa, já que o "bracelet" do título original faz referência à tornozeleira eletrônica) conta a história de Lise, uma jovem detida na praia e levada a julgamento por suspeita de ter assassinado a melhor amiga após passar um dia na casa dela. Desde o início, o filme é enigmático: a câmera capta aquela realidade à distância, sem nos dar informação prévia. Quando o julgamento começa, ela é culpada ou inocente? Não se sabe.

A próxima questão que o roteiro ataca é a comportamental: Lise se mostra surpreendemente fria e inabalada pelos acontecimentos. Os pais, em depoimento, dizem que a mesma se tornou fechada após o ocorrido, e é o que acontece: durante o escrutínio que sofre da promotoria, responde as questões com uma face neutra e um tom de voz calmo. Quando pressionada, a maior alteração que demonstra é o silêncio. A dramaturgia de A Garota da Pulseira é austera e econômica, e ressalta ainda mais o caráter críptico da informação que estamos lidando.

Outro fator lidado pelo roteiro é no tocante à moralidade e moralismo: logo saberemos que, um mês antes do crime, a vítima divulgou um vídeo íntimo da ré e a mesma, possessa de raiva, disse as frases "eu vou te matar". A adolescente, bastante liberta sexualmente, certamente confronta um outro tabu mais imediato nesse tipo de caso: se alguém em julgamento tem uma vida que não aprovamos, isso torna a pesssoa culpada por algo tão terrível quanto crime de assassinato? Reforça ainda mais que, tirando o pai e o irmão de Lise e um ex-namorado da vítima, só temos mulheres debatendo perspectivas de mundo: a ré, a promotora, a defensora, a mãe e uma depoente compõem grande parte do elenco.

Curioso que Demoustier foi radical nesse sentido: mesmo ao final, seu filme recusa a ser didático ou explicar algo com todas as letras, preferindo um momento silencioso e apenas indicial, que fica a cargo da audiência interpretar aquela símbolo que lhe é oferecido sem afirmações objetivas por trás. Do início ao fim, Demoustier evita ressignificações, mas afirmações de que a luta penal não é uma luta sobre fatos, mas uma luta de narrativas construídas a partir de fatos.

Daí que surge, justamente, a riqueza do filme: para alguns, a imagem da câmera de segurança que mostra Lise apoiar a cabeça na moto pouco após de sair da casa da amiga pode significar uma culpa assumida, bem como sua fuga no meio da noite, por várias horas ou o surgimento de uma faca semelhante à uma desaparecida na noite do crime. Para outros, explicam-se fatos simples e falhos como dormir após uma bebedeira, ceder ao seu desejo sexual ou esquecer onde você estava em certa hora. Cada imagem evocada por evidências exibidas em tela ou diálogos fora do tribunal pode significar um passo para um lado ou para o outro.

O curioso disso é pensar, justamente, no cumprimento do rigor da lei e como toda ela é baseada em uma intepretação. Inevitável pensar em quantos inocentes não estão presos ou quantos culpados não estão soltos à medida que os argumentos se desenrolam e o diretor exibe um controle cênico maduro, pois não precisa de grandes composições de cores e movimentos de câmera ou de dramaturgia exagerada para causar sentimentos de antipatia ou empatia no espectador. Não há exatamente um momento de destaque - o filme todo é um destaque em si em sua interessante construção, pois tudo é controlado, homogêneo e calculado que não há momentos que patinam ou momentos que transcendem. Restam, sim, algumas arestas soltas excessivas para afirmar o mesmo ponto sobre a personalidade da protagonista, mas ainda assim não diminui o impacto de um filme contudente no sentido de nos lembrar a importância da narrativa na nossa realidade.

Crítica da cobertura do 21º Festival do Rio

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