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Críticas

Cineplayers

A arte de fazer rir e chorar em um único filme.

9,5

É comum com o passar do tempo que alguns valores e prioridades percam a força e sejam substituídos por ideais e maneiras de pensar diferentes. O mundo cresceu com isso, não há como negar, mas é certo também que muita coisa boa acabou ficando para trás. É essa uma das ordens naturais da vida, e infelizmente nem tudo pode ser recuperado. Mas com o cinema é diferente. Se formos parar e pensar no que significava o cinema quando surgiu e no que ele passou a significar com a passagem dos anos, é até surpreendente notar como foi mudando e se transformando. No entanto, nesse caso, nada se perdeu; apenas mudou. Assim como qualquer outra forma de arte, os filmes são eternos e podem renascer a cada vez que são assistidos, trazendo consigo aqueles valores e prioridades que hoje já não existem mais. E não há filmografia mais capaz de provar isso do que a de Charles Chaplin, dono de um jeito de filmar que nunca mais foi igualado. Para entender essa magia renascendo, esse retorno às origens da Sétima Arte, basta assistir a apenas um exemplar deste rico currículo: O Garoto (The Kid, 1921), um trabalho que remete ao que há de mais valioso em qualquer ramificação da arte – o coração.

No começo da década de 1920, o cinema era um entretenimento relativamente recente e, portanto, ainda um tanto cru; nada de efeitos especiais ou enredos muito mirabolantes. As premissas simples e até inocentes eram mais recorrentes, e um dos maiores nomes do ramo era Chaplin, com seu personagem icônico, Carlitos (ou Vagabundo). Em uma época de sofrimento e privações causados pela Primeira Guerra Mundial, o Vagabundo servia não apenas como um “palhaço”, mas também como uma válvula de escape para toda a agonia que ainda prevalecia. Chaplin o usava como um tipo de consolo que tantos precisavam, assim como também o usava como um manifesto contra a condição deplorável do mundo pós-guerra. Mas foi apenas com O Garoto que o diretor incluiu nesse universo de Carlitos um núcleo familiar, a única coisa que faltava para enriquecer por completo a gama de temas pertinentes que sempre marcaram presença nas aventuras do personagem.

Agora dividindo a tela quase que o tempo todo com o ator mirim Jackie Coogan, Chaplin nos conta o que acontece quando Carlitos encontra na rua um bebê abandonado, que traz consigo o bilhete de uma mãe desesperada (vivida por Edna Purviance) implorando para que cuidem de seu filho. O garotinho então vai crescendo ao lado de nosso protagonista e aprendendo aos poucos os truques necessários para se viver em um mundo dominado pela pobreza e pela apatia, que consistem basicamente em quebrar vidraças para gerar um emprego para seu pai postiço vidraceiro. No entanto, toda essa pequena felicidade dos dois é ameaçada quando, anos depois, a mãe biológica enriquece e decide voltar para pegar a guarda do menino.

Como de costume, a comédia pastelão domina quase toda a duração, temperada por um ar de melancolia que também sempre se faz presente nas obras do cineasta. Está aí um tipo de antítese que misteriosamente sempre funcionou bem nas mãos de Chaplin: a habilidade de dosar humor e tristeza de uma maneira homogênea, como se um elemento completasse o outro. De um lado, temos a doçura do carinho que nasce entre os dois, esse amor paternal que estabelece uma dependência entre um e outro, a família que nunca nenhum ali jamais teve; do outro, há uma amargura densa presa na atmosfera de um mundo repleto dos tipos mais tristonhos e infelizes (entre eles, a própria mãe, que teve que abandonar seu recém-nascido pelas circunstancias miseráveis que lhe rodeavam). Entre um ponto e outro, há um entrosamento sincero e verdadeiro entre esses dois opostos, alçando tudo a uma sintonia tão natural entre todos os elementos que parece se tratar na verdade de um drama realista e tocante.

Com base nessa atmosfera mista mostrada pela lente do cineasta, podemos entender o quão forte é a história em questão. O Garoto é um tipo de comédia em que se nota um diretor preocupado em passar algo de apelo sério por trás de tudo. Isso é tão notável que a própria comédia fica em segundo plano diante das fortes emoções abordadas pelo roteiro. O ápice dessa montanha russa de sensações se dá numa cena antológica em que invadem o cortiço do Vagabundo e tentam lhe tirar o filho. O olhar de Chaplin nesse momento, os bracinhos da criança esticados implorando pelo pai, o desespero de Carlitos ao sair pulando de telhado em telhado atrás do carro do orfanato – tudo atinge uma catarse tão intensa que é impossível não se arrepiar.

Muitos afirmam que em O Garoto, Chaplin abre mão de suas costumeiras críticas sociais mordazes. Mas isso não é verdade, a começar pelo significado presente na própria imagem maltrapilha do Vagabundo – uma representação da condição da sociedade da época, algo entre a decadência e o orgulho. Mas, além disso, há sim uma forte cutucada nas prioridades humanas quando o diretor filma o sonho de Carlitos nos momentos finais da trama, onde uma sociedade utópica sendo maculada por sentimentos como inveja e mentira é retratada. Durante essa breve sucessão de cenas, Chaplin monta rapidamente um mundo ideal, onde pessoas convivem sem nenhum tipo de atrito (inclusive uma insinuação de sexo livre entre todos é mostrada), e depois desmorona tudo apenas inserindo os elementos egoístas e mesquinhos que fazem do mundo um verdadeiro caos. Tudo acontece rápido demais e não é grande o suficiente para tirar o foco principal do enredo, que é o valor da família, mas ainda assim está lá para qualquer um ver e tirar suas próprias conclusões.

Talvez um pouco longe das grandes comédias do seu diretor, como Luzes da Cidade (City Lights, 1931), ou até menos satírico como tantas outras, O Garoto se assemelha mais aos dramas de Chaplin, com a diferença de possuir em sua essência uma mensagem um tanto mais feliz. É um filme de porte pequeno, mas que contém tantos momentos singelos, que se torna algo de valor incalculável, não somente como arte, não somente como manifesto, mas também como uma lição do que a vida é e do que ela pode ser quando olhada por um ponto de vista nada mais do que otimista.

Comentários (10)

Thiago Cotta | segunda-feira, 19 de Setembro de 2011 - 11:04

O próprio garoto rouba a cena, muito cativante assim como o filme em si, só não consigo enxergar tanta mensagem e tanto drama quanto a crítica descreve.

André | terça-feira, 20 de Setembro de 2011 - 16:05

Crítica maravilhosa, assim como o filme. Parabéns, Heitor!

Alan Nina | terça-feira, 01 de Janeiro de 2013 - 12:21

Uma das melhores críticas que já li, amo demais os textos do Heitor!!!

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