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Críticas

Cineplayers

Subversão da beleza.

8,0

Viagem. A Grande Beleza (La Grande Bellezza, 2013) tem início com um texto que metaforiza a palavra, e, narrativamente, expande seu conceito até o último fotograma. Pois viagem também caracteriza o passeio de Paolo Sorrentino pelas artes, literatura, pintura, cinema – especialmente de seu país, a Itália –, numa obra que trafega entre o real e o fantástico e acumula mais simbolismos do que uma mente humana pode assimilar numa primeira sessão. Tal qual o turista japonês morto fulminantemente diante da grande beleza de Roma, no início da projeção, os 140 minutos subsequentes desse reflexivo filme se comprovam a arrebatadora viagem sugerida nessa pretensiosa passagem do primeiro ato.

Para tal, Sorrentino suga as principais influências do grande cinema italiano e produz uma adaptação pós-moderna da crônica social de Federico Fellini em A Doce Vida (La Dolce Vita, 1960). Roma é novamente vista sob uma sombra de imensa frivolidade e extravagâncias, porém, agora, sem aquela compreensível onda de otimismo e esperança de um país que se recupera de uma grande guerra. Hoje a Itália se encontra em grave crise financeira, a juventude está à procura de empregos, e não à toa a alta sociedade aqui analisada surge envelhecida – o que também acentua o ridículo e a irresponsabilidade da total entrega ao hedonismo no contexto atual, de extrema urgência.

A câmera se agita freneticamente e fecha em primeiríssimo plano rostos marcados por rugas disfarçadas por pesada maquiagem ou botox. A música machuca os ouvidos, mas combina com os tipos estranhos numa dança vulgar. O cúmulo do mau gosto também se converte em forma de arte: no quarto de uma suntuosa mansão em festa, uma menina brinca, quando é interrompida pelos pais. Arrastada para frente de um painel e de todos, ela chora intensamente, e esperneia atirando a tinta no grande quadro à sua frente. Eis uma obra de arte! Todos aplaudem. É Sorrentino atacando não apenas o entretenimento sem limites e escrúpulos dos ricaços de seu país (e qualquer semelhança com as orgias envolvendo menores do ex-primeiro ministro Silvio Berlusconi não pode ser mera coincidência), como também levantando uma enorme interrogação sobre o conceito de arte. Embora tendencioso, o cineasta é feliz em mostrar a arte em sua diversidade, tanto ironizando uma artista de performance charlatona e masoquista como contemplando belíssimo mosaico de fotos de um homem comum, em cada dia de sua vida, registrando seu envelhecimento desde o nascimento.

Paolo Sorrentino também apela a Fellini ao impor à crítica social e política – herança do neorrealismo – uma abordagem irreverente. Para isso, adota como protagonista um tipo legítimo felliniano, Jep Gambardella, jornalista (assim como o Marcello Rubini de A Doce Vida) que goza de prestígio devido à publicação de um best-seller publicado há 40 anos. Cínico (a atuação de Toni Servillo é hipnotizante), Jep desfruta de seus status social privilegiado, porém passeia pela alta classe com olhar sempre entediado, ar de superioridade de quem assiste a tudo de fora e interpreta o mundo como um “poeta vate”. A ironia, porém, está exatamente no fato de ser essa a sua ruína, pois o próprio explica seu bloqueio criativo (assim como o Guido Anselmi de [idem, 1963], diga-se) através de sua – real – incapacidade de enxergar beleza no mundo.

Jep está fadado a escrutinar o comportamento da elite romana. A visão de mundo restrita de seus amigos o faz crítico, alheio a toda “maravilha” que o cerca. Jep não aceita tamanha deficiência intelectual e se fecha em um círculo de razão. Nesses momentos, de maneira inteligente, Sorrentino tira Jep da posição de condutor moral da narrativa e o submete, tal qual um espectador, à condição de passageiro de sua viagem sempre que o filme investe no onírico. Prova disso é o atordoamento que acomete o protagonista quando este tenta compreender a aparição de uma girafa, que some num desvio de olhar. “É tudo um truque!”, explica o mágico, e Jep não entende. Ele já não é mais capaz de enxergar o mundo sob a ótica de um menino, como o Nobel de Literatura Giosuè Carducci dizia ser imprescindível para o exercício poético, e como sua chefe Dandina diz ver a vida.

A única pessoa vista acima de Jep Gambardella é presa por corrupção. Ele é seu vizinho de cima, e o protagonista assiste àquele show da decadência moral da sua gente com certa satisfação. Mas Jep, ao contrário do que pensa, nunca esteve acima disso, e a prova de sua contaminação está na incapacidade de exercer seu ofício num ambiente ao qual não consegue se entregar (compreender, enxergar, inclusive apreciar) por completo. Então é Dandina, a figura caricata, a princípio retratada como síntese da excentricidade da elite romana, quem se revela a personagem mais lúcida e autossuficiente dentro do universo criado por Sorrentino. Dandina, a anã.

Comentários (4)

Patrick Corrêa | sábado, 21 de Dezembro de 2013 - 22:07

Ótimo texto!

Mas podia aumentar essa nota aí...

Adriano Augusto dos Santos | quarta-feira, 25 de Dezembro de 2013 - 11:08

Adorei esse.É uma lembrança em movimento,sem cópia,de Fellini.
Planos lindos,boas cenas,excelente cena final.
Toda a dispersão que aparece alguma vez é só prazer.

Carlos Dantas | sexta-feira, 03 de Janeiro de 2014 - 02:01

Crítica excelente. Pena que na tela a coisa não funcionou muito bem. Achei bem maçante, apesar de toda aquela atmosfera felliniana. Eu diria que a crítica ficou melhor que o filme.

Silvia Lima | terça-feira, 11 de Fevereiro de 2014 - 02:25

Para mim uma obra prima. O filme traduz exatamente seu nobre título, uma beleza que fere.
Excelente texto Rodrigo.

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