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Críticas

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Heroísmo afegão: sobreviver ao ufanismo de Peter Berg

5,0

Hollywood é uma indústria e, como qualquer outra, tem como principal finalidade o dinheiro. Essa é também a principal justificativa para a alteração drástica dos títulos dos filmes que aterrissam no Brasil. Em mais uma tentativa bem-sucedida de tornar seus títulos nacionais mais genéricos e, assim, eliminar problemas de identificação com seu público-alvo, a distribuidora nacional concebeu O Grande Herói (Lone Survivor, 2012), capaz de contornar o spoiler contido no original e igualá-lo a outros filmes de guerra americanos, marcados pelo excesso de patriotismo e parcialidade em sua abordagem – características essas que, curiosamente, com o aumento dos críticos ao imperialismo americano e às intervenções militares dos Estados Unidos ao redor do globo, vêm cada vez mais incomodando ao grande público.

Tal noção é prontamente identificada pelo diretor e roteirista Peter Berg no início da produção: a colagem de imagens reais do árduo treinamento ao qual são submetidos os militares ganha uma música de fundo cretina que evoca superação e vitória. Nesse mesmo prólogo, depoimentos ufanistas dos soldados ressaltam uma mensagem propagandista digna dos apelativos materiais publicitários oficiais das Forças Armadas dos EUA. Só então o filme se debruça sobre o material original (o livro escrito pelo romancista Patrick Robinson, baseado nas experiências reais do soldado Marcus Luttrell) e vai se mostrando gradativa e ligeiramente mais interessante.

Uma equipe de Navy Seals é enviada para colocar em prática a Operação Red Wings: de um morro, observar uma vila e capturar ou eliminar o líder talibã Ahmad Shah, aliado a Osama Bin Laden. Durante a operação, o grupo se depara com três pastores e tem início uma pertinente discussão moral: matar o velho e os dois adolescentes, civis, ou deixá-los ir? A expressão de ódio do trio deixa claro o que acontecerá se eles forem soltos, e um dos fuzileiros, Matt “Axe”, defende enfaticamente a morte daqueles afegãos, sob a alegação de que apenas um jovem, há poucas semanas, foi responsável por um ataque que vitimou 20 soldados americanos. Qual seria a sua decisão? O impasse entre os soldados é esperto, pois permite que o espectador forme sua própria opinião antes do tenente Michael Murphy decidir pelo destino dos pastores.

A esperteza de Peter Berg ao oferecer esse tempo entre o surgimento da problemática e a tomada de decisão dos Navy Seals - e preenchê-lo com argumentos "válidos" para o assassinato daqueles afegãos - esconde um truque narrativo dos mais maliciosos: em seguida, a equipe liderada pelo tenente Murphy paga caro justamente por tomar a decisão moralmente correta. A mensagem implícita é bem clara: num conflito armado, respeite os direitos humanos do inimigo e ponha a sua própria vida e de seus amigos em risco. Também daí o cineasta, tendencioso, salienta características muito caras às Forças Armadas, como a cumplicidade e a obediência entre os militares; apesar das discordâncias, em nenhum momento é questionada a decisão tomada pelo superior.

Dali em diante, O Grande Herói segue o curso de filme de guerra hollywoodiano que é e vemos Peter Berg abraçar com convicção sua condição de discípulo de Michael Bay, como já o fizera no ridículo Battleship – Batalha dos Mares (Battlheship, 2012). Para eles, uma cena de ação não é boa se inteligível. A edição se torna frenética, e os planos, relâmpagos. Quando algo precisa ser visto, dá-lhe câmera lenta, que é utilizada indiscriminadamente enquanto os soldados descem o morro rolando. Uma lástima, especialmente em um filme cujo momento de maior tensão se desenvolve enquanto o sniper acompanha, do campo restrito de sua mira, vultos de talibãs se esgueirarem rapidamente pela mata.

E a influência de Michael Bay não para por aí: o elenco, embora carismático, nada pode fazer além de viver seus personagens como as figuras unidimensionais que são: Taylor Kitsch contorna sua aparência mais jovem e convence como o líder que é só virtudes Michael Murphy (a propósito, ele protagoniza uma cena chupada de Platoon [idem, 1986]); o sempre ótimo Ben Foster vive o frio e letal sniper, Matt “Axe” Axelson; a Emile Hirsch cabe o estereótipo do novato como Danny Dietz; e, na pele de Marcus Luttrell, o produtor Mark Wahlberg não viu problemas em viver o insignificante personagem-título – do original “único sobrevivente”, pois o personagem não tem nada de grande herói. Este, vejam só, é um homem de pele parda e turbante na cabeça.

Em meio a tanta manipulação promovida por Peter Berg, Lone Survivor parece sobreviver somente pelo que restou do livro escrito por Luttrell e Robinson. Uma dessas reminiscências é a pluralidade de crenças e ideologias atribuída ao povo afegão, que de fato não é sinônimo de talibã. Muito pelo contrário: um de seus povos mais tradicionais segue o pashtunwali, código de leis baseado em termos como igualdade, respeito, solidariedade e outros princípios que se opõem ao fundamentalismo islâmico terrorista genericamente atribuído ao povo do Afeganistão. É bem verdade que essa importante menção é feita de maneira preguiçosa e deixada lá para atrás dos créditos finais por Peter Berg, mas não ignorada sumariamente – e não é difícil pensar que o cineasta, medíocre e ufanista, só não o tenha feito porque isso significaria ignorar o personagem mais importante do terceiro ato do longa-metragem e verdadeiro grande herói: um afegão.

Comentários (6)

Raphael da Silveira Leite Miguel | terça-feira, 25 de Março de 2014 - 13:09

Cheio de spoilers ein Rodrigo, rsrsrs!

Mas o filme realmente tinha potencial pra ser do nível de um \"O Resgate do Soldado Ryan\", com algumas questões interessantes abordadas, sobre o código de conduta dos soldados e algumas questões políticas.

Mas o filme se perde do meio pra frente e vira um show de tiros pra todo lado sem muita tensão, nem dá pra se apegar aos personagens que passam por aflitos.

ADEMAR FERREIRA BESSA | terça-feira, 25 de Março de 2014 - 15:34

Parabéns ao RODRIGO, pela sua visão determinada. Comentário e análise pertinentes.

Rodrigo Torres | terça-feira, 25 de Março de 2014 - 16:42

SPOILERS NA CRÍTICA!

Eu escrevi esse texto voadaço, e acabei esquecendo de sugerir ao Daniel que colocasse tal aviso. Quem for ler ou não vir esse comentário a tempo, que me desculpe. (Ainda que eu ache que o verdadeiro spoiler seja o do título original, que eu só faço confirmar 😏)

Rodrigo Torres | terça-feira, 25 de Março de 2014 - 16:43

E obrigado, Ademar. 😉

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