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Críticas

Cineplayers

A velha e nova Europa se dividem na fábula pitoresca de Wes Anderson.

8,0

Bom, cem anos depois do cinema começar a existir, me perece imprescindível que um autor, hoje, tenha a habilidade de criar mundos, personagens ou experiências. Wes Anderson trabalha numa progressão clara, perseguindo um ideal que somente ele sabe qual é. Mas pelo que vimos desde Pura Adrenalina (Bottle Rocket, 1996) até esse O Grande Hotel Budapeste (The Grand Budapest Hotel, 2014), existe uma clara obsessão do diretor em afastar-se do real. Se Os Excêntricos Tenenbaums (The Royal Tenenbausm, 1999) já era meio folclórico, e Moonrise Kingdom (idem, 2012) meio impossível, esse filme mais recente do diretor parece elevar suas obsessões ao patamar mais alto até aqui.

Em todos os níveis da história, tudo parece ser meticulosamente calculado pela estética pragmática de Anderson, e tudo respira e transpira um grau bem potente de cinema. E Grande Hotel Budapeste não poderia ser menos imaginativo do que é. Não tanto porque o Wes Anderson é o Wes Anderson, mas porque, na maior parte do tempo, o filme narra uma história que não chega a existir, a não ser nas sucessivas descrições e imaginações de alguém. O filme, na verdade, acontece na imaginação da jovem, que lê o livro escrito pelo personagem de Tom Wilkinson, que por sua vez visitou o Grand Budapeste Hotel em 1962 e ouviu a história pela boca de Zero Moustafa, um dos personagens que supostamente viveu as aventuras que o filme narra.

É aqui que se descortina o truque de mestre de Anderson em seu mais recente filme. Trapaceiro, como seu personagem principal, o diretor neutraliza sua crítica mais comum ao mesmo tempo em que a potencializa. Fetichista como nunca, é verdade, porém subserviente à história. Roteirizando pela primeira vez sozinho, Anderson finalmente encontra uma história em que seu pragmatismo visual e narrativo se equilibram em pura harmonia. Muito embora isso não signifique quase nada em termos de qualidade, é definitivamente algo a ser considerado em termos de filmografia.

O tom fabuloso do filme mascara uma história sombria e triste, já que o Grand Budapest se fundamenta como um totem à uma sociedade que persiste em existir, ainda que moribunda. Tal qual as fantasias hollywoodianas precedentes aos noir, com seus palácios exóticos, seus romances grandiosos e seus telefones brancos, o hotel Grand Budapest é um monumento ao anacronismo, a um estilo de vida que se nega veementemente a reconhecer a existência do grande ponto de impacto nos rumos da história do século XX - a Primeira Guerra, mantendo seus sonhos de belle èpoque, numa época (sic) em que a guerra já mostrava sua devassidão (a vida do próprio Zero Moustafa, um refugiado, já é um indício disso).

É na aurora da Segunda Guerra, com a ascensão do fascismo, que a Europa (ou a Velha Europa, aqui representada pelo hotel) não é mais autorizada a sonhar, e bate de frente com a acachapante realidade, rompendo de vez com fantasia dos tempos passados. Se os trejeitos e vocabulário de Monsieur Gustave, e seu estilo de vida caracterizado principalmente pelos perfumes e pela paixão que têm por mulheres idosas (estas sim, viveram no auge da belle époque) refletem um homem que se recusa a enxergar seu próprio tempo, a linguagem pomposa e o olhar insólito do Zero Moustafa, interpretado por F. Murray Abraham, caracterizam um personagem profundamente marcado pela referida ruptura - ele não se recusa a enxergá-la, mas não é capaz de comungar com ela.

Esses contornos colocam O Grande Hotel Budapeste como um ponto fora da curva na filmografia do Wes Anderson. Se nos tiques visuais (presentes nas composições, cenários, personagens e etc) ele nunca assumiu tanto suas características, em questões de história, acostumado a filmes que descrevem conflitos familiares, aqui ele ousa muito mais. O grande personagem deste longa nem é Monsieur Gustave ou Zero Moustafa, mas obviamente o hotel, com as implicações de representação já mencionadas. Porém, ao mesmo tempo em que abraça o cinismo da maneira mais contundente até então (as sucessivas mortes são representadas de maneira cômica, pagando tributo a um dos diretores que notoriamente inspiraram esse trabalho, Ernst Lubitsch), Anderson encontra, nas brechas de sua frenética action piece, abismos de emoção.

De Zero, um pária, um irrelevante, como o próprio nome sugere, passando por seu afetado e fantástico amor, Aghata, até as mais sutis e imperceptíveis construções de personagens, o filme é capaz de transitar pelos tons e sentidos, da melancolia à doçura, sem parecer descompassado, recortado. O final é seco, escuro, descreve o momento em que os personagens (humanos) dos filmes se dão conta de que a ruptura da velha e nova Europa é inexorável e fatal. As palavras, as visões, tudo rui diante do fracasso infeliz do tempo em manter as coisas vivas. Permanece, porém, aquilo que é inventado, que é imaginado, que é registrado em algum nível qualquer de consciência. E O Grande Hotel Budapeste existe apenas a partir daí. Todos os seus personagens de gestos, cores e trejeitos específicos saem da imaginação de seu autor - não há a menor dúvida. As pesquisas e obsessões de Anderson, que se acumulam e se embaralham ao longo dos anos, transformaram-se em sua magnum opus, que é ao mesmo tempo uma fábula sobre a Europa, sobre o século XX, sobre o criar cinema e, acima de tudo, sobre ele mesmo.

Comentários (4)

Gustavo Hackaq | quinta-feira, 24 de Julho de 2014 - 20:42

Sobre essa crítica: sim.

Fabiano Chinaski | quinta-feira, 24 de Julho de 2014 - 21:53

“É um engano muitíssimo comum, pensarem que a imaginação do escritor trabalha sem parar, que vive inventando um suprimento infinito de casos e incidentes, que ele simplesmente tira suas histórias do nada. A bem da verdade, é ao contrário. Quando descobrem que é escritor, trazem personagens e eventos até você, e se mantiver sua habilidade de observar e ouvir com atenção, as histórias vão continuar a procurá-lo sua vida inteira (...). Os acontecimentos seguintes me foram descritos exatamente como os apresento aqui e de forma totalmente inesperada”.

Carol L. | sexta-feira, 25 de Julho de 2014 - 16:03

Me incomoda um pouco todos os planos do filme serem em grande angular. Mas eu sou suspeita já que não curto muito Wes Anderson. Consigo ver o mérito do diretor, principalmente na estética (apesar de não ser minha praia). O personagem Zero é bem carismático, gostaria mais se o filme fosse sobre ele em vez de sobre o Gustave.

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