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Críticas

Cineplayers

Um estudo em vermelho.

9,0

Basta um corte no dedo com um pedaço de vidro para jorrar uma pequena gota de sangue, tingindo a pele de vermelho e deixando fluir, de certa forma, o que há por dentro de cada um. Na imaginação de Ingmar Bergman quando este ainda era criança, o interior das pessoas – físico e emocional – aparecia em vermelho. Dissecar a alma, o que há de mais fundo no ser humano, parece ter sido sempre sua maior busca durante toda sua trajetória como cineasta, e talvez seja em Gritos e Sussurros (Viskningar och rop, 1972) que ele tenha alcançado sua experiência mais “física” nesse sentido. Basta pensarmos na cena em que Ingrid Thulin mutila sua própria genitália com um caco de vidro, pra depois esparramar todo o sangue escorrido em seu rosto, para vermos que Bergman realizava aqui sua dissecação mais visceral e literal da alma feminina. Alma que “vaza” no ambiente e acaba tingindo todos os cenários do filme de um vermelho vívido, de modo que o que temos em tela são nada mais que vísceras aprisionando personagens.

Mas se engana quem rotula Gritos e Sussurros apenas como um drama de caráter intimista. Sim, há um aprofundamento no estudo psicológico e uma imersão nos conflitos emocionais dos personagens, mas muita coisa no filme é apenas sugestão, ou apenas signos que ocultam intenções e sentimentos. Até porque Bergman sabia que era impossível e até pretensioso tentar esclarecer todos os sentimentos envoltos na relação de três irmãs. A proximidade da morte, as dores físicas e emocionais angustiantes, o verdadeiro elo que as une – tudo ali é um mistério, por mais que a câmera do diretor pareça estar inserida dentro de um organismo vivo. Penetrar no corpo físico não é uma dificuldade, mas isso não lhe permite acesso aos verdadeiros conflitos ali existentes. Nem mesmo em seus costumeiros close-ups conseguem ultrapassar o olhar por vezes inexpressivo de Agnes, Karin e Maria.

Resta então estudar as marcas destes rostos, procurar ali qualquer indício que seja capaz de indicar a verdadeira natureza de cada uma delas e sair do plano subjetivo. Os mistérios presentes na alma feminina, que sempre fascinaram tanto os estudos de Bergman – como vemos em Persona - Quando Duas Mulheres Pecam (Persona, 1966) e Sonata de Outono (Höstsonaten, 1978) – ganham aqui contornos ainda mais salientes. Não apenas um curioso sobre as formas femininas, o cineasta também parece intrigado com as relações entre duas mulheres ou mais. Já dizia ele que achava a relação entre mãe e filha a mais misteriosa de todas quando falou a respeito de Sonata de Outono, e em Gritos e Sussurros o que permeia o ar é essa inexatidão de sentimentos presente entre as três irmãs, que ora parecem se preocupar uma com a outra, ora parecem apenas se aturar, ora parecem se odiar. Como em todos seus dramas com um núcleo familiar, Bergman questiona a natureza dos relacionamentos familiares. Seres que supostamente deveriam se amar acima de tudo, mas que guardam dentro de si um acúmulo de sentimentos de toda uma vida, nem sempre positivos, e que muitas vezes apenas se suportam.

E desse estudo de âmbito familiar de relações fraternais femininas, o cineasta parte para um estudo mais amplo sobre a ação do tempo sobre o indivíduo. As noções de tempo e espaço estão redimensionadas aqui em função da situação de cada uma das irmãs, e inclusive de Anna, a empregada zelosa e dedicada que cuida da irmã moribunda. O tempo massacra cada uma delas e se faz notar durante todo o filme, desde a cena inicial em que a câmera encara os ponteiros de um relógio e seu enlouquecedor tic-tac, que vai se misturar ao ambiente e ecoar pelo filme todo, nunca nos deixando esquecer sua importância que interliga morte e vida. A proximidade da morte e o papel que o tempo exerce nessa ação são fundamentais neste filme, pois enquanto Agnes vai alcançando a serenidade que circunda a chegada de seu fim, Maria e Karin sofrem com o temor de continuarem presas a uma vida insatisfatória enquanto envelhecem. Como sempre, o terror implícito nas obras de Bergman está muito próximo dos temores característicos dos seres humanos, por isso é sempre tão palpável.

No final das contas, são esses os fantasmas que assombram o filme e que por vezes não permitem ao espectador adentrar naquele ambiente. Embora exista ali um grande número de cenas em planos abertos, que parecem englobar todo o ambiente, há sempre a sensação de uma ameaça fora do enquadramento, inúmeras tomadas em que as personagens olham atenciosamente para fora do campo de visão do espectador, encarando aquilo que em momento algum conseguimos entender por completo. Tudo sempre é perecível no cinema de Bergman, tudo é sempre muito frágil, e através das cores gritantes de sua mise-en-scène contrastadas com as sussurrantes verdades implícitas em suas discussões que podemos apreciar em Gritos e Sussurros o que talvez seja seu maior filme de horror – o horror da finitude da vida, tanto para os que estão para morrer quanto para os que ainda têm muito tempo pela frente.

Comentários (10)

Augusto Barbosa | sábado, 23 de Março de 2013 - 09:48

Filme que precisava de uma crítica mesmo. Melhor do tio Bergman.

Ótimo texto, Heitor! 😋

Renan Fernandes | quinta-feira, 28 de Novembro de 2013 - 00:53

Que filme lindo, cada cena eu perdia o folego...
Grande crítica,

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