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Críticas

Cineplayers

A banalidade do pensar.

9,0

A filósofa Hannah Arendt foi uma das figuras mais influentes e polêmicas do pensamento ocidental no século XX. Sua influência se deu por conta de trabalhos como As Origens do Totalitarismo e A Condição Humana, prêmios mundo afora e uma sólida carreira acadêmica numa das universidades mais importantes dos Estados Unidos, onde se estabeleceu em decorrência do Holocausto. Já o aspecto controverso de sua história advém da cobertura do julgamento do nazista Adolf Eichmann - evento este que a diretora Margareth Von Trotta enfoca no desenvolvimento do filme sobre a pensadora teuto-americana.

Nas palavras da própria cineasta, sua opção por um fato concreto é decorrente da impossibilidade de se filmar alguém pensando. De fato, Hannah Arendt (idem, 2013) é bem mais que isso. A obra é uma reconstituição fidedigna do contexto social, temporal, geográfico, histórico e intelectual da pensadora, o que permite ao espectador (inclusive àquele que sequer ouviu falar da cinebiografada) compreender plenamente o seu pensamento, da base à essência. É um trabalho especialmente importante, já que as discordâncias com o livro publicado pela teórica alemã à época geraram distorções que perduram até hoje.

Para tal, Von Trotta invade a casa da pensadora alemã, sede de reuniões e debates da elite intelectual nova-iorquina. A câmera também adentra a sala de aula de Hannah Arendt, e assim conhecemos a professora e um pouco da escola filosófica continental que a formou. A cineasta se beneficia de um elenco que confere naturalidade e fluidez à narrativa, que emperra quando interrompida por flashbacks. Porém, todos esses elementos da estética convencional de Von Trotta servem a um objetivo muito claro e nobre: o de fornecer o máximo de informações sobre a vida e a obra de Hannah Arendt com a precisão e honestidade necessárias para se desfazer mal-entendidos históricos e entender o que ela disse de fato.

Entender, aliás, foi o que motivou Hannan Arendt a se oferecer ao New Yorker para cobrir o julgamento de Adolf Eichmann. Na posição de tenente-coronel da SS, ele foi o responsável pela logística da "solução final", sistema de distribuição, transporte e extermínio de milhões de judeus nos campos de concentração. Ao fim da Segunda Guerra Mundial, Eichmann foi o único militar do alto escalão do Terceiro Reich a fugir e conseguir exílio, quando uma operação da Mossad conseguiu encontrá-lo na Argentina e sequestrá-lo para ser julgado em Israel. Com direito a transmissão ao vivo, o julgamento foi transformado num verdadeiro evento em que o réu foi diminuído a um sádico pervertido, imagem esta que não era suficiente a Arendt. Enquanto jornalistas de todo o mundo acompanhavam àquele festival de justiça ao povo judeu apenas para reportar um acontecimento de resultado definido, Arendt se pôs a pensar e estabeleceu um julgamento próprio, concebendo um dos trabalhos mais universais e atemporais - além de polêmico, e ainda incompreendido - da humanidade: a banalidade do mal.

É nesse momento que Von Trotta mais acerta: se Hannah é interpretada pela ótima Barbara Sukowa, econômica e muito objetiva em meio a franzidas de cenho, o julgamento é ilustrado com o máximo de imparcialidade, através de imagens de arquivo. A cineasta, assim, se exime do risco de uma caracterização caricata ou complacente de Eichmann. Ali vemos exatamente o que Hannah viu, o que permite fazermos nosso próprio julgamento antes mesmo de revelada a posição da pensadora. Na contramão de todos, ela observa que o executor-chefe do Reich não apresenta sinais de antissemitismo, psicopatia ou qualquer outra característica que comprovasse que o réu tenha agido por puro sadismo. Em sua análise, ele não passava de um burocrata medíocre, a cumprir ordens sem qualquer intervenção moral ou ética - como qualquer outro nazista faria em seu lugar. Ou seja: o mal não estaria no indivíduo, mas no regime.

Bem verdade que Hannah bateu duro quando, nessa mesma série de artigos, denunciou a negligência das lideranças judaicas durante a ascensão do Nazismo. Mas ninguém se preocupou em apurar a informação; ignoraram o fato de Hannah - baseada em suas convicções políticas e filosóficas - ter sido uma militante do sionismo ainda em 1933, quando muitos judeus ainda nem percebiam a gravidade da ameaça do nacional-socialismo, e a atacaram de traidora. Nesse sentido, é curioso perceber como os ataques a Arendt comprovam uma das bases de sua tese sobre A Banalidade do Mal: na recusa em pensar por indivíduos medíocres submetidos a um sistema estabelecido - ou, nesse caso específico, uma ideia unânime: a de que Eichman era um monstro. Ávidos pela vingança do povo judeu, os detratores de Arendt não deram crédito ao que dizia quem também fora uma vítima do Nazismo, não tendo lido todo o material sobre o julgamento de Eichmann ou debatido o tema intelectualmente (mesma via truculenta que forma unanimidades fascistas nas redes sociais cinco décadas depois). Por isso não viam estar comprovando a tese da pensadora alemã de que, tanto quanto banalizar o mal, os medíocres banalizam o pensamento. Fina ironia.

Arendt jamais absolveu o Nazismo. Tampouco Eichmann. Tamanha desonestidade intelectual trouxe à tona sua relação amorosa com o professor e mentor Martin Heidegger, identificando o tenro affair como base de suas ideias, desconsiderando que ela rompeu com o filósofo alemão por ele ter aderido ao partido nazista. Alienante, a caça à bruxa impediu que um ponto importante, ato falho de Arendt, não ganhasse a devida relevância: o fato da pensadora ter ignorado uma entrevista de Eichmann a um repórter argentino, anterior a seu julgamento, em que o nazista assumia a crueldade de seus atos e se regozijava por ter chefiado um sistema tão perfeito. Um debate mais rico poderia nascer dali. Não aconteceu, mas nem mesmo esse equívoco invalida a contribuição do trabalho de Hannah Arendt.

Isso porque nada abala a espantosa atualidade da banalidade do mal. Ela está no militar com autorização pra torturar e no fundamentalista que promove o terror em nome de uma crença (cenário muito bem explorado no subestimado Ameaça Terrorista, por exemplo); no policial que atende à ordem de dispersar uma multidão pacífica, composta de professores, com gás lacrimogênio e tiros de borracha. Esse é o estado de violência institucionalizada em que se vive, em que o "cidadão de bem" vende voto, se deixa corromper por "coisa boba" e depois banca a Rachel Sheherazade, sem se conscientizar de que suas atitudes egoístas promovem a corrupção, a desigualdade e o preconceito que depois refletem em si. Pois a lógica é sempre essa: o torturador e o terrorista, o policial e o professor, aparentemente em lados distintos, ambos peças e vítimas de um mesmo sistema, falido moral e eticamente.

Quando dispensou uma reflexão profunda ao caso Adolf Eichmann, Hannah Arendt estipulou o óbvio: que, diante de uma situação de violência ao outro, é o raciocínio que nos diferencia de outros animais. O que vemos é gente nua presa ao poste com trava de bicicleta. Ousaram dizer que a banalidade do mal estava errada.

Comentários (9)

Lucas do Carmo | terça-feira, 11 de Fevereiro de 2014 - 16:47

vou priorizar esse, e dar uma procurada na autora, sequer conhecia. texto mais interessante que li do rodrigo aqui, sem dúvida.

Rodrigo Torres | terça-feira, 11 de Fevereiro de 2014 - 18:47

Veja o filme, Kadu. Vale a pena. Às vezes eu acho o filme um pouco convencional, até estereotipa um pouco os detratores de Arendt com uma imagem de almofadinha e tudo mais, e a intenção é claramente a de se desfazer as distorções sobre o pensamento dela. Mas, no geral, é uma obra muito justa e condizente com o que ela propunha.

Adriano Augusto dos Santos | sábado, 15 de Fevereiro de 2014 - 11:43

Nem sei se concordo em tudo com ela sobre o caso do Eichmann (ele sabe o que fez,é racional e por isso mesmo é parte fundamental.O sistema era aquele mas sua culpa é total),mas sobre a banalidade com certeza.

Não pensar,não levar em conta inumeros motivos,o por que de qualquer coisa acontecer é um ponto a menos.Sempre valido raciocinar e tentar entender por que algo aconteceu.

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