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Críticas

Cineplayers

Passo a passo.

9,0
Festivais de cinema deveriam ter a capacidade não apenas de nos fazer viajar e descobrir novas culturas e universos, mas sermos levados a novos lugares por novas mãos. Uma das grandes (se não a maior) riquezas de ter ido ao Olhar de Cinema esse ano não poderia ser outra que não a de conhecer um novo nome para a cinefilia, daqueles que já a primeira vista marcam de maneira indelével um momento. Pois aprendam a escrever um novo nome tailandês: Anocha Suwichakornpong. De seu conterrâneo - Apichatpong Weerasethakul - Anocha guarda a sensibilidade e o aprofundamento estético. Talvez em algum aspecto ou outro seus cinemas conversem (tanto que ela o localizou como influenciador, ao tempo que hoje são amigos), mas no geral podemos observar obras distintas, e uma tentativa de Anocha em encapsular o tempo e suas variantes, sejam elas macro ou micro. 

Esse História Mundana serviu como abertura do seu trabalho aos longas metragens, após quase 10 anos de realização de curtas. Por ter passeado por várias vertentes no outro formato, Anocha se apresenta segura e precisa aqui, nesse longa de 7 anos atrás moderno e vigoroso, com uma série de questionamentos fílmicos e humanos, capazes de render uma palestra. O filme gira em torno da relação entre dois homens, um enfermeiro fisioterapeuta e seu jovem paciente recém lesionado. De classe abastada, o rapaz passa por um período de inconformação com seu atual estado de paraplegia, e a esse acompanhante caberá calma para lidar não apenas com seu paciente, mas com toda a estrutura familiar e formal da casa. Essa é apenas a base do roteiro, ao menos seus aspectos de concritude; a partir dessa premissa apresentada, o filme ousa voos absurdamente maiores. 

No contexto humano, o desenrolar de uma história se apresentar aos pedaços é nunca menos que impressionante, como se lapsos de memória fossem sendo redescobertos e ressignificados, dando um aspecto de sonho a uma narrativa que entendemos aos poucos e que nunca se propôs ser linear ou conservadora. Isso tudo é permitido graças a uma ambiciosa montagem, que provoca peças na nossa capacidade cognitiva e informa o quadro inteiro apenas quando lhe interessa, se lhe interessar, num jogo da memória real, onde talvez peças fiquem faltando e talvez nunca sejamos capazes de lembrar. Com isso, Anocha já dá um chute na pretensão, a abraça com força e consegue corresponder aos seus intentos, criando um filme de aparência estética simples mas rico em camadas e extrato, uma produção onde claramente várias leituras serão necessárias para apreciar o todo mais acertadamente. 

Um ato de cor age, o que essa tal Anocha faz. Estrear em longa metragem na Tailândia com um longa tão sensorial (na forma mais pura da expressão) é quase um abuso, uma rebeldia merecida para qualquer um que aprecie cinema. Mas olhando melhor, talvez nascer cineasta na Tailândia já seja um ato máximo de provocação e enfrentamento perante a arte. Anocha Suwichakornpong surge na cena já desejando ser descoberta e debatida, mesmo que saibamos o caráter ordinário de nosso circuito. A pressão virá através de espaços de resistência como o Olhar de Cinema, que não só pensa alguém como Anocha também nos abriga a saber de sua existência. Uma jovem mulher cineasta, que resolve criar explosões no espaço, explosões na Terra, para gritar com elas que há espaço para resistir, que só é necessário mudar se insistir, que tudo só acontecerá com esforço e colaboração. E essa se dará muito mais pela compreensão do passado e dos afetos que do esforço físico; o esforço sempre será interno para mudar o externo. Taí muito da beleza do que se vê e ouve nessa história mundana contada da maneira menos mundana possível. 

Visto no 6º Olhar de Cinema de Curitiba

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