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Holy Motors

(Holy Motors, 2012)
7,7
Média
296 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

A decomposição de personagem.

9,0

Primeiro longa-metragem que Leos Carax faz desde 1999, Holy Motors (idem, 2012), é a epopeia de um dia, ou de muitos deles. De uma pessoa, e de várias delas. O filme foi considerado por muitos como estranho, incompreensível e quase que imediatamente ruim pelo mesmo fator. Que o autor de Os Amantes de Ponte Neuf (Lês Amants de Pont Neuf, 1991) não se incomode com reações presas a paradigmas e padrões não é novidade, e seu novo filme é outro atestado vivo disso: várias vidas, várias histórias, vários fragmentos. Nada começa, se desenvolve ou termina de verdade.

Certamente metalinguístico, Holy Motors conta a história de Sr. Oscar, um homem que sai de manhã em uma limusine último tipo (e talvez uma comparação com Cosmópolis [Cosmopolis, 2012] seja interessante de ser feita) para, ao longo do dia, viver várias situações diferentes. Através de encontros pré-estabelecidos, ele vive uma ficção diferente, feita na vida real, em cada parte do dia. Denis Lavant não é apenas Oscar, ele também é uma pobre senhora pedinte. Também é um assassino de aluguel. E um fetichista tecnológico. E um bandido revoltado com a burguesia. E um pai de família. E um músico. E um idoso falecendo. Ele também é, pela segunda vez, o fantástico Senhor Merda, que protagonizava o segmento de Carax no filme-coletânea Tokyo! (idem, 2008) feito em conjunto com Michel Gondry e Bong Joon-ho.

Com o seu início misterioso e impossível de se compreender narrativamente (e isso não é uma crítica negativa), o espaço não é respeitado e Carax logo faz com que nós encaremos a nós mesmos assistindo ao filme – através de uma plateia de rostos cobertos pelas sombras que, impassíveis, assistem a a uma obra. Nós mesmos assistiremos vários outros, assumiremos tal sequência como realidade através de cenários, figurinos e maquiagem, suspenderemos nossa descrença e logo então seremos frustrados mais uma vez. Passearemos pelo melodrama, pelo drama familiar, pela comédia grotesca, pelos filmes de crime e até mesmo pelo musical.

Carax usa a própria narrativa que jamais se completa e jamais se explica para que os recursos do cinema tomem conta – Lavant mora debaixo da pele de dez homens ao longo de um dia, do qual vemos elipticamente duas horas e os planos demorados, a exigência da atenção ao detalhe e a valorização da emoção até que não exista nada além dela é uma constante. Seus movimentos de câmera são leves e econômicos. Não há tempo para monotonia, já que a jornada bizarra de Oscar parece nunca chegar ao fim: ele tem o dinheiro, tem a limusine, tem as condições, mas é um homem incompleto, que precisa viver várias vidas e experimentar todo tipo de situação porque não consegue mais saber qual é, então, sua verdadeira identidade – a mesma angústia que outro passageiro de limusine, Robert Pattinson, enfrenta no terço final de Cosmópolis.

O passeio pelos gêneros é sinal da própria incompletude de identidade que domina nosso contexto. Somos tudo ao mesmo tempo agora, mas também não somos nada. Os atores sociais de Carax vivem vários tipos diferentes de identificação e trabalham com modalidades diferentes. No final, Oscar, o personagem por debaixo dos outros, sempre será deslocado no final. Ele não pertence realmente. Ele não está lá, naquelas locações. Assim como nós também não estamos, mas, por alguns minutos, a ficção é forte demais e acreditamos estar. Acreditamos sentir a excitação escatológica do Senhor Merda,  o ímpeto furioso dos assassinos, a dor de partir desse mundo, a empatia pelos familiares. Quando a projeção para, seremos nós novamente, a identificação acabará, a experiência irá lentamente se diluindo até que uma hora ou outra, porventura, nos encontremos com ela de novo.

O encontro com uma outra praticante do hobby, interpretada pela cantora pop Kylie Minogue, servirá para expor as angústias dessas pessoas. Minogue, responsável pela seção musical do filme, parodia a mando de Carax o maior clichê do gênero: uma pergunta cuja resposta acaba sendo cantada. Compondo um momento de extrema ironia, a letra acaba não respondendo nada: apenas transforma as dúvidas em música, transforma os enquadramentos e movimentos de câmera em dança compondo uma das muitas set pieces do filme que, apesar de curtas, são recheados de peso dramático em uma verdadeira sala de espelhos onde tudo tem seu peso próprio e ao mesmo tempo peso nenhum, já que são representações.

É curioso notar que logo o musical, o gênero mais incoerente com a realidade, ocorra em um momento em que Oscar não encarna nenhum personagem. E a música que acompanha a voz da cantora vem do nada: mesmo a própria realidade de Oscar nada mais é do que, outra vez, uma mera composição de realidade. É a quebra total com o espaço-tempo diegético com o qual havíamos estabelecido o pacto até então; o mundo nunca é desenhado completamente; como tudo é ilusão, tudo pode acontecer em qualquer lugar. Essa é a recusa pelo lugar comum do autor da obra.

Filme escorregadio, Holy Motors jamais para no mesmo lugar, jamais está satisfeito com uma potencialidade só. Assim como o próprio Carax. Assim como o próprio espectador atual no dia a dia que, quando vê o conflito exposto em tela, muitas vezes repudiará o filme como sem sentido. Como nossas vidas, o sentido é muitas vezes expressado com todo um decoro calculado: as situações tristes exigem movimentos pequenos e pesados, e a euforia insana exige a performance do ódio homicida poucas vezes liberado. Tudo é uma construção. Lavant atua não apenas para si ou Carax, mas para todos os olhos. Cada um com um anseio, angústia e expectativas para a vida. Não expressa uma visão, mas várias. Não expressa um absurdo, mas todos. Oscar, essa caracterização desconhecida, de cujo nome sabemos, mas não fazemos ideia de sua verdadeira natureza, é um mistério assim como cada um dos sete bilhões de indivíduos que pisam no planeta terra. Pai, assassino, aberração, miserável, moribundo, tantos outros.

Muitas de nossas fantasias, perversões, idílios e fobias coabitam no espetáculo lento, trágico, sarcástico e ensandecido de Leos Carax. Irrequieto, assim como seus personagens, indefinível, assim como seus filmes. Maldito, estranho, bizarro, fora do tom, assim como Lavant, Oscar, Senhor Merda... Ou quem sabe, assim como o próprio espectador-indivíduo, o próprio conflito cinematográfico encarnado, sem gênero, meio ou fim. Não há a identidade, mas a ideia – e no final das contas dessa ideia nasceu o homem, e dele a arte. Da arte, filmes como Holy Motors, um pensamento consistente como poucos sobre a incompletude que nos move desde os tempos primitivos. 

Visto no 14º Festival do Rio

Comentários (15)

Angelão | quinta-feira, 04 de Outubro de 2012 - 09:45

"voce só vai ter a noção exata da qualidade desse texto depois que vir o filme" É por isso que eu não li, hehe, porque esse filme eu vou assistir com certeza e não quero se "contaminado" por impressões alheias.

Rodrigo Torres | quinta-feira, 04 de Outubro de 2012 - 15:30

Fazes bem, Ângelo! rs

Jairo Simões | sexta-feira, 26 de Outubro de 2012 - 11:34

Caramba!!! Que texto hein... Parabéns Mr. Brum! 😉 Vi ele ontem na Mostra Cine BH... Experiência incrível! Bom demais mesmo!

André Policarpo | terça-feira, 18 de Dezembro de 2012 - 20:17

Parabéns pelo excelente texto! E que filme esse!!??? Fala sério! TOP D+!

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