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Críticas

Cineplayers

O presente infinito: os experimentos de fabulação no novo filme do diretor tainlandês.

9,0

Como filmar um rio e as suas transformações? Como mostrar para além de sua materialidade caudalosa – ainda maior pelas recentes inundações que o afetam – os espíritos que o assombram e as variadas histórias que povoam ao longo dos séculos sua extensa margem? É esse exercício de filmar o que não caberia em imagens a que se propõe Apichatpong Weerasethakul em Hotel Mekong (Mekong Hotel, 2012). O filme nasce de um projeto quase documental: mostrar os processos de mudança do  maior rio da Ásia, o Mekong, que devido ao crescente desmatamento da região e a construção de hidroelétricas, passa por desvio e inundações que afetam a população a sua margem. Mas, desconstruindo os elementos de constituição de sua obra anterior, Apichatpong dilui essa narrativa de maneira bastante experimental.

Assim, se o rio Mekong é também uma presença física abundante que Apichatpong filma demoradamente no final do filme (cena em que barcos e jet skis navegam pelas águas), também interessa ao diretor o seu registro imaterial (espiritual? Sobrenatural? Transcendente?). Para tanto, o Apichatpong instala os três atores de sua narrativa no hotel que dá título ao filme e margeia o rio. Em um exercício de experimentação variadas, os três ensaiam, recitam, relembram, o texto de Ecstasy Garden (filme escrito anos antes, pelo diretor).

Entre fantasmas Pobs que comem as entranhas alheias, um casal apaixonado e o correr do rio, os três atores entregam-se a um exercício de fabulação. Do texto ficcional passamos com facilidade para a improvisação ou o puro registro documental de situações – temos assim uma indiscernibilidade completa entre as modos de encenação e as suas fronteiras, entre fantasia (mais do que ficção) e realidade.

Com o roteiro antigo como base, a fabulação se dá pela subversão dos diálogos como improviso, que vai e volta em cima da recriação de uma história de espíritos. Dessa forma, é possível que os personagens encarnem e reencarnem cada vez em um corpo, em todos os corpos, numa troca constante do local de encenação dos atores.

Desse efeito de permuta, resulta a fragilidade da mise en scène, que contrasta com os diálogos e a narrativa. Os atores estão sempre caracterizados da mesma forma (com roupas comuns como camisetas e jeans), como se estivessem da fato em um ensaio  e os espaços nunca ultrapassam as dependências do hotel (quarto, varanda, corredores); enquanto, na trama, a história viaja por séculos e espíritos vagueiam.

Completando o clima de ensaio, a música performada por Chai Bhatana tocada de forma repetitiva ao longo de todo filme parece não querer nos deixar esquecer de que o cinema é artifício e construção permanente. E que esse tempo que transcorre no filme, marcado pela música, poderá não ser mais o tempo concreto do rio – ameaçado por inundações, poluição e desvios.

O tempo em Hotel Mekong existe apenas como atualização perpétua de presentes. Nesse ponto vale destacar mais uma semelhança do filme com o seu quase oposto: O Ano Passado em Marienbad (L'Année dernière à Marienbad, 1961), de Alain Resnais. Nos dois casos: uma tríade de personagens se encerra no espaço de um hotel; o espaço do filme é um elemento fundamental da narrativa e imagem-sonora entra em choque com a imagem-visual.

Porém, o tempo no filme de Resnais atualiza a memória como presente, lidando diretamente com a ficção como registro narrativo: um encontro atual que reconta o encontro no passado, que pode ou não ter acontecido. Já em Hotel Mekong não há memória possível (pois não há passado) e o imaterial vem da mitologia que margeia o rio: os espíritos que assombram as suas bordas, os encontros/términos/reencontros dos casais a sua beira. Como em uma performance, o filme de Apichatpong trabalha no registro do acontecimento constante, em que as cenas do filme encadeiam-se como atos autônomos e não como uma progressão narrativa (falsificada ou verdadeira).

Nesse exercício de fabulação do mitológico, o que nos lembra Apichatpong é que o tempo, no cinema e no rio, existe também como infinitude de presentes. Onde é possível que em uma cena o espírito Pob encarnado na mãe coma as entranhas da filha sobre a cama; que em outra a filha esteja feliz com seu amante e, na sequência seguinte, que os namorados se reencontrem como espíritos em outras encarnações. Sem bifurcações de linearidade cronológica, todos os presentes contraditórios são copossíveis e simultâneos. Um filme é imagem/som e mise en scène. Um rio é materialidade e sua fabulação ao redor.

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