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Críticas

Cineplayers

Um filme que cria reflexões importantes sobre atitudes drásticas do ser humano. Uma pequena obra-prima.

9,0

Atualmente, as maiores atrocidades desfilam diante de nós sem sequer nos determos em uma reflexão. Os telejornais estão entupidos de guerras, de atentados, de centenas, de milhares de mortos e isso parece não alterar nada para ninguém. Processamos essas informações como meras estatísticas ou como eventos muito distantes e, portanto, fora de nossa alçada e também de nossa preocupação. Talvez seja o egoísmo que nos prende em um cotidiano de coisas rasas, o responsável por taparmos os olhos diante do apelo alheio. Mas não importa o motivo, o fato é que mesmo defronte com as situações mais escandalosas, não as sentimos.

Quase ninguém se recorda do genocídio provocado pelo conflito entre as etnias tutsi e hutu em Ruanda em 1994, assim como quase ninguém se dá conta dos inúmeros conflitos em curso hoje na África e na Ásia, fruto ainda do maldito neocolonialismo perpetrado pelas nações européias no final do séc. XIX. É preciso um filme corajoso como esse “Hotel Ruanda” pra nos fazer enxergar, e isso é especialmente importante quando essas barbaridades são cometidas sob a leniência do chamado mundo civilizado. Mas por que diante do filme, enxergamos? Simples, porque ele nos proporciona sentir, e isso chacoalha, acorda, faz refletir. O cinema tem a capacidade de nos atingir e o diretor Terry George sabe usar suas ferramentas pra provocar no público sensações agudas e com isso propagar uma mensagem em favor da paz.

Don Cheadle interpreta Paul Rusesabagina, personagem verídico que pode ser  descrito como um Oscar Schindler ruandense. Durante o conflito ele salvou 1268 vidas ao transformar o hotel da qual era gerente em refúgio para crianças, refugiados e perseguidos. Valendo-se de contatos com pessoas influentes e com membros das milícias e, principalmente, de uma inteligência em favor do próximo, Paul não se intimidou e sozinho, conseguiu trazer um resquício de humanidade à loucura mais devassa. A beleza e a força de sua história dão a “Hotel Ruanda” a moldura dramática que sustenta e eleva o pano fundo a ser alcançado; por isso mesmo, assisti-lo é um soco no estômago, mas não é desagradável, no sentido de não ser uma mera vitrine para a exposição da violência.

O diretor e o roteirista sintetizam todo o conflito na jornada de Paul, e a barbárie exibida toca, simultaneamente, ao espectador e a ele, que tem toda a crescente de seu posicionamento ligada aos fatos que lhe atingem. Quando a ONU e as potências viram as costas para Ruanda, questionamos a geopolítica do ‘não tenho lucro, não me importa!’, mas também vemos as crenças de Paul desmoronando. Quando ele vê milhares de corpos espalhados por uma estrada, temos a dimensão macabra do genocídio, mas também nos comovemos com seu único vacilo – e aqui, vale sublinhar a atuação genial de Don Cheadle e de todo o elenco.

No entanto, assistir a “Hotel Ruanda” é mais que ser arrastado por um poderoso drama: é repensar os limites do que se considera humano. E não me refiro apenas à catarse que a barbárie provoca, mas a como cada indivíduo se posiciona diante da vida. Ficamos sim perplexos diante da insanidade produzida pela combinação de miséria, descaso, segregação e ignorância que desacorrenta o que de mais bestial existe no homem. Mas ao vermos Paul mantendo inabalável a sua fortaleza de virtudes, um outro pólo do ser humano se clareia – o pólo que verdadeiramente nos legitima, o pólo da razão, da ética, do sentimento. Isso dá esperança e nos arranca do comodismo. É como se Paul, veladamente, nos questionasse: "Você aí, tá fazendo o quê?".

Forte, marcante e denso, “Hotel Ruanda” é um filme a ser lembrado e a ser imitado. Como drama é exemplar ao transpor alerta social em um história magnética, mas como propagador da paz é ainda mais admirável. O cinema não pode negar-se a ser narrador do mundo em que atua e, com isso, também instigar mudanças. Diante da brutalidade escancarada em “Hotel Ruanda”, qualquer reflexão parece ínfima. Resta só torcer para que não sejam apenas reflexões momentâneas. Que sejam atitudes!

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