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Críticas

Cineplayers

O cinema político globalizado de Villeneuve.

8,0

* Contém spoilers da história.

Com a morte da mãe, dois gêmeos (ele e ela) ficam sabendo que têm um irmão perdido em algum lugar do Oriente Médio. O rapaz não se interessa em descobrir o paradeiro do infeliz, mas a moça vai em busca do passado da progenitora. Durante a viagem, ela descobre, entre outras desgraças, que a mãe era uma guerrilheira, matou um político importante e teve os gêmeos na prisão, a mesma em que fora torturada e estuprada, ou seja, eles são filhos do torturador. É apenas o início da história, não necessariamente o pior dela.

Com 100 personagens e passado em 14 períodos históricos diferentes, Incendies é complexo, sem dúvida, mas longe de ser difícil. Villeneuve é geralmente criticado por ser muito cerebral e um tanto frio, talvez distante (escola Maurice Pialat ou Philippe Garrel de direção), mas aqui o cineasta parece ter se livrado enfim de seus maneirismos publicitários. Talvez pela aproximação do diretor do tema (parece realmente mais interessado no que está contando mais do que fazer belas cenas), Villeneuve comove pelo raciocínio, de maneira elegante e comedida, sem esconder o horror das cenas mais horrendas, usando sua experiência e sensibilidade para construir os cenários desse país fictício e único.

O país, a guerra, a época histórica ou os acontecimentos específicos não são nunca nomeados, mas fazem referências aos vários acontecimentos do Oriente Médio ao longo das quatro últimas décadas de guerras, invasões, saques, massacres, roubos, carnificinas, "limpeza étnica", assassinatos políticos, mulheres obrigadas a cobrir o rosto e demais honrarias. Incendies é o filme da cólera e do ódio universais. Nem foi preciso ir muito longe: a assistente de produção, Sarah Kaskas, libanesa, vivia em Beirute, a capital do país, quando o Iraque bombardeou a cidade em 2006: usou a própria memória para reconstruir mais um dos vários incêndios do filme.

O filme, doloroso e brutal, conta com a interpretação da atriz belga Lubna Azabal, uma habituée de André Téchiné, para atingir seu ápice. É baseado numa peça do libanês Wajdi Mouawad, que fugiu com sua família do país aos 8 anos de idade por conta da guerra civil que vem destroçando o Líbano desde os anos 60. Há vários incêndios em Incendies, nenhum deles mais impactante que o massacre pelos cristãos de um ônibus lotado de civis muçulmanos. A heroína do filme, cristã, consegue fugir mostrando uma cruz aos assassinos. Tenta levar junto a filha de uma muçulmana prestes a morrer, mas a menina corre de volta para os braços da mãe até ser atingida por uma rajada de metralhadora e morrer nos braços já em chamas da mãe. O horror.

Filmado na Jordânia, Incêndios é um filme politizado de uma maneira diferente: é globalizado. Fala sim das guerras da década de 60, do obscurantismo religioso e dos refugiados, mas é também um filme sobre os filhos desses imigrantes, nascidos em países estrangeiros, que não falam a língua dos avós, não conhecem a cultura dos pais, e, em determinado momento, se perguntam (ou não) qual é a sua identidade - se é que existe uma, ou mesmo se eles têm uma. Daí a metáfora do incêndio: ruínas, apenas pequenos restos de algo que foi destruído selvagemente.

Incêndios, de longe o melhor filme canadense de 2010, é fruto do amadurecimento artístico de seu diretor, o canadense-francês Denis Villeneuve, que ano passado fez o contundente e por vezes aterrador Polytechnique, sobre o massacre das alunas (12 mortas e mais de 40 feridos) na Escola Politécnica da Université de Montréal em 1989 - Villeneuve já havia ganhado o prêmio Fripesci, em Berlim, em 2001, pelo sentimental Maelström. Seu curta Next Floor foi indicado ao Oscar de melhor curta em 2009. E ele está apenas no quarto filme.

Villeneuve optou por um filme sóbrio, maduro, bastante clássico na feitura. Apesar da inteligência do roteiro, há um sem número de facilidades para resumir tanta história. Chegam a incomodar os recursos didáticos, como a personagem do notário (dispensável) e, claro, boa parte das brigas entre os gêmeos. O diretor escolheu a narração como base e teve vários ganhos com isso, mas havemos de sofrer com os inúmeros entra-e-sai de cena, viagens, hotéis, diálogos "explicativos" etc. Não surpreende, portanto, no fim do filme, quando enfim se revela o paradeiro do filho desaparecido: num mundo de tantas idas e vindas, era mesmo até esperado.

Essa platitude não chega a destruir o filme, só incomoda. É plenamente compensada pela força dos diálogos. Um exemplo. No testamento que a mãe deixa aos filhos, lê-se: "Enterrem-me sem caixão, nua e sem orações, com a face voltada para a terra. Nada de epitáfio para aqueles que não cumprem suas promessas".

* especial de Montréal, no Canadá, para o Cineplayers.

Comentários (3)

Thiago Cotta | segunda-feira, 07 de Maio de 2012 - 15:27

Se tivesse lido o primeiro parágrafo da crítica antes de assistir o filme ficaria muito puto.

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