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Críticas

Cineplayers

O Memorial de Domingos Oliveira.

6,5

Assistimos Infância e não conseguimos desgrudar os olhos de Fernanda Montenegro, dona de uma personagem imponente, que marca presença e garante não somente os melhores momentos da trama, mas também que ela se mantenha sólida, desde seu início floreado até seu final reflexivo. Os mais dispersos se flagrarão atentos, seja pela própria Fernanda, pela habilidosa direção de Domingos Oliveira que prende o espectador em seus quadros como pelo texto enxuto, recheado de diálogos, que se assemelha em várias óticas a uma peça. Não estamos diante de um grande filme, creio que a proposta funcionaria muito melhor no teatro, no entanto temos um belo texto com diálogos concisos e um elenco em plena sintonia vivenciando uma família com suas turbulências lá na década de 50. O filme é, na verdade, uma alusão à própria história de vida do cineasta.  

Muita coisa acontece no meio desse drama sumário. Desde a morte de um cão que ingere naftalinas até a venda de alguns imóveis da matriarca, o que ocasiona boa parte dos desentendimentos que afunilarão o roteiro e dividirá a família. Ainda há ocorrências distintas relativas ao elenco de apoio, como a doméstica (Nanda Costa) e seu caso romântico, a professora particular (Maria Flor) juntamente uma criança pouco educada e a estrela, o pequeno Rodriguinho, o alter-ego de Domingos, aqui vivido pelo desconhecido Raul Guaraná, garoto escolhido entre mais de duzentas crianças. Todos tem um bom tempo em cena, participando do filme como lapsos de recordações retratadas com demasiado carinho, e ignorando sentimentalismos usuais que certamente comprometeriam a qualidade da adaptação.

Em Botafogo, grandes coisas marcaram a vida de Domingos. Num imenso casarão, a figura de sua avó, Dona Mocinha, parece se manter ativa, com sua personalidade implacável interpretada com avidez e humor por uma adorável Fernanda Montenegro. Sua diversão é se queixar de tudo e de todos, especialmente sobre política. Um de seus maiores fascínios é o programa de Carlos Lacerda, jornalista notoriamente crítico da política de Getúlio Vargas. Suas duras críticas eram ecoadas pelo consentimento dessa matriarca endurecida. O caráter político que envolve esse interesse da Dona Mocinha é arbitrário, não tendo nenhuma outra função a não ser caracterizar a personagem. Já o conflito que movimenta os personagens diz respeito à venda de alguns imóveis às escondidas e um investimento o qual Henrique (Paulo Betti, impagável) acredita que poderá dar certo. 

A sensação é de fato a de conferir um filme com caráter teatral. As locações, os manejos e as atuações contribuem para a sensibilidade. Tem um imensurável valor, já que é autoral e cíclico, além de profundamente íntimo. O que chama a atenção é a caprichada mise en scene, com seus personagens compostos e bem dispostos no cenário no imenso casarão. É um filme sobre Domingos Oliveira para os outros. Além de tudo, trata-se de um diagnóstico de uma sociedade com outros valores, sendo que alguns deles persistem firmemente. É, também, um filme sobre diferenças de classes, centrado na burguesia. Suas crenças, sua moral, suas condutas sociais e o que a envolve. Domingos Oliveira concebe sua arte e explana o cinema como memória.

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