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Críticas

Cineplayers

Cinema independente americano vazio, que poderia ter ido mais longe. Ainda assim, bom.

6,0

Na virada dos anos 1980 para os anos 1990, quando uma produtora chamada Miramax, controlada pelo gordinho invocado Harvey Weinstein, comprou os direitos de distribuição de um pequeno filme chamado Sexo, Mentiras e Videotape (Sex, Lies, and Videotape, 1989), dirigido por um desconhecido Steven Soderbergh, nasceu o que se convencionou chamar de "cinema independente americano" (assim mesmo, entre aspas). Essa expressão abrigava um tipo de cinema mais autoral, de temática mais ousada, e pouco visto nas produções bancadas pelos grandes estúdios. De lá pra cá, a coisa mudou muito. Hoje, o tal "cinema independente" já aceita filmes de maior orçamento e com atores mais renomados. O único traço comum que os une é a preferência por histórias e tipos bizarros (quanto mais estranho, melhor) e por uma retrato cru da realidade (quanto mais sujo o filme, melhor).

De todo o modo, esse movimento (se é que ele pode ser chamado dessa forma) trouxe um novo frescor ao cinema americano na primeira metade dos anos 90; ele que já vinha meio combalido da década anterior. Talvez isso explique o porquê a indústria, quem sabe tentando prestar contas ao passado recente, faça questão de celebrar um filme independente por ano. Veja que o fenômeno se repete com uma constância e pontualidade britânicas: de repente, sem mais nem menos, começamos a ouvir falar de um determinado filme que foi sensação em algum festival de cinema. A obra vai adquirindo força ao longo da temporada. Chega a época das premiações, e a produção confirma as expectativas e é indicada para vários deles. Passa-se alguns meses e esse mesmo filme estréia no circuito comercial brasileiro. O público, incentivado pelo hype que se formou ao seu redor, vai correndo e, surpresa, o filme, longe de ser ruim, não é tudo aquilo que falaram. Foi assim em 2001, com Entre Quatro Paredes (In The Bedroom, 2001); em 2002, com Secretária (Secretary, 2002); em 2003, com The Cooler - Quebrando a Banca (The Cooler, 2003) e O Agente da Estação (The Station Agent, 2003); em 2004, com Maria Cheia de Graça (Maria Full of Grace, 2004) e Napoleon Dynamite (idem, 2004); em 2005, com Retratos de Família (Junebug, 2005) e Eu, Você e Todos Nós (Me and You and Everyone We Know, 2005); em 2006, com Half Nelson (idem, 2006) e Pequena Miss Sunshine (Little Miss Sunshine, 2006); em 2007, com Juno (idem, 2007) e A Família Savage (The Savages, 2007); em 2008, com Rio Congelado (Frozen River, 2008) e Wendy e Lucy (idem, 2008); em 2009, com Educação (An Education, 2009) e Preciosa - Uma História de Esperança (Precious: Based on the Novel Push by Sapphire, 2009). Em 2010, é a vez de Inverno da Alma (Winter's Bone, 2010).

Inverno da Alma começa sua narrativa nos apresentando Ree Dolly (Jennifer Lawrence). Aos 17 anos, ela não tem tempo para se preocupar com baladas, namorados e paqueras. Sua realidade é outra. Ela precisa cuidar de seus dois irmãos menores, Sonny, de 12 anos, e Ashlee, de 7, e da mãe, que praticamente vegeta pela casa em estado inconsciente. Eles moram na afastada região montanhosa de Ozark, no Estado do Missouri. Quem, como eu, tiver curiosidade de procurá-la na internet, descobrirá que ela se situa exatamente no miolo dos EUA, num território desconhecido até mesmo dos americanos.

O pai, Jessup, está ausente. Logo saberemos o motivo: ele está preso por tráfico de metanfetamina, droga que pode ser fabricada em pequenos laboratórios e cujo poder destrutivo é maior do que o crack. Ree recebe a visita do xerife Baskin (Garret Dillahunt). Ela não o tolera. Ela ainda está convencida de que foi ele que denunciou seu pai sem se preocupar com as provas do delito. O xerife a informa que Jessup acabara de ser solto, mas se não comparecer a um determinado ato judicial, sua fiança será executada. E o bem dado em garantia foi simplesmente a casa em que a família reside. Para não perdê-la, Ree tem duas opções: achar seu pai e conduzi-lo às autoridades, ou provar que ele está morto. A jovem começa a investigação e nós acompanhamos sua história.

Na sua estrutura, Inverno da Alma pode ser visto como um filme noir. As principais características do gênero estão lá: um personagem desaparecido (que pode ou não estar vivo), os obstáculos que se impõem pelo caminho (os parentes e amigos consultados por Ree não revelam tudo aquilo que parecem saber), e o fator tempo (se a moça não localizar seu pai, perderá a casa). Mas é claro que a diretora Debra Granik não estava nem um pouco interessada em realizar um thriller. Sua preocupação é usar o desaparecimento de Jessup apenas como um fio condutor da narrativa. O que importa para Granik é contar a história de uma jovem que luta para manter sua família unida, preservando sua dignidade num meio hostil.

Inverno da Alma é o segundo filme da diretora Granik. Em 2004, ela escreveu e dirigiu Down to the Bone (idem, 2004), pelo qual ganhou o prêmio de melhor direção no Festival de Sundance. Lá, ela contava a história de uma mulher que cria seus filhos ao mesmo tempo que tem lidar com seu vício em cocaína. Aqui, Granik, com a colaboração de Anne Rossellini no roteiro, revisita alguns desses mesmos temas, em especial a crise da família e o consumo de drogas. Como diretora, Granik tem o mérito de passar seu recado mais pelas ações do que pelos diálogos. Ao mostrar o modo pelo qual Ashlee acorda Sonny pela manhã, como eles brincam no pula-pula, e criam vários cachorros ao mesmo tempo, a diretora nos transmite a sensação de existe ali uma família verdadeira e não apenas aquela imaginada numa tela de computador.

Granik opta por colar a câmera nos rostos de seus atores. Percebemos as marcas de expressão, as rugas, os vincos do tempo. Sentimos o quão sofrida é aquela gente. Um sofrimento que advém, sim, das adversidades naturais (o frio nas montanhas torna o local quase inabitável), mas também da criminalidade, dos segredos, e da falta de perspectiva (a grande oportunidade para os jovens é o alistamento militar). Há uma derrapadas, como a sequência da feira de animais, em que Granik insere uma desnecessária trilha sonora para acentuar a tensão do momento. Mas nada muito grave que coloque tudo a perder. Em certo sentido, Inverno da Alma podia muito bem ser um filme dirigido pelos irmãos Dardenne.  

Outra virtude de Granik, é empregar os cenários naturais no desenvolvimento da trama e dos personagens. As paisagens inóspitas em que a história é ambientada, os trailers que servem de residências aos moradores, as roupas penduradas nos varais a céu aberto. Nada é desperdiçado. Em determinados momentos, as paisagens descoloridas nos remetem ao mundo pós-apocaplíptico que vimos em A Estrada (The Road, 2009), em que a civilização e o progresso ainda não chegou (ou já foi embora). Em Inverno da Alma, os elementos externos definem e explicam os internos.

O elenco, formado na sua maioria por desconhecidos, também chama atenção. O destaque vai para Jennifer Lawrence, no papel de Ree. Sua personagem está em praticamente todas as cenas. Ree são várias mulheres em uma: ao peregrinar de casa em casa, em busca de informações sobre o paradeiro do pai, Ree é determinada. Ao cuidar de seus irmãos, Ree é maternal. Ao chorar na frente da mãe, Ree é simplesmente uma adolescente que precisa de colo. A falta de dinheiro faz com que ela sempre dependa da doa vontade dos vizinhos. Mesmo assim, ela ensina aos seus irmãos que não se deve suplicar por aquilo que deve ser oferecido. Ao lado dessa lição de dignidade, Ree mostra uma coragem (talvez não seja à toa que a imagem da atriz que surge no pôster do filme, com os cabelos loiros soltos ao vento, assemelha-se muito à de uma leoa) e um amadurecimento que vão muito além da sua idade cronológica. Dada à ausência do pai e à doença da mãe, ficamos imaginando de quem ela adquiriu essas virtudes. Dentro do seu mundo, Ree é uma super-heroína às avessas, sem super-poderes, e sem capa.

O nome de maior destaque do restante do elenco é John Hawkes, que interpreta seu tio Teardrop. Hawkes é daqueles atores que raramente vemos em grandes produções. De fato, seu tipo marginal (uma estranha combinação de John Carradine e Vincent Gallo), e seu rosto marcado, encaixa-se à perfeição com filmes no estilo de Inverno da Alma. Sempre de barba, com aspecto sujo, e cheirando cocaína como quem troca de camisa, Teardrop a princípio se recusa – com violência, inclusive – a ajudar sua sobrinha na busca pelo pai. Mas ele sabe que Ree é inteligente e que fará as perguntas certas que a levarão a se deparar com a verdade. O tempo vai mostrar a Teardrop que as relações de sangue são mais fortes que pensa e que, ao som de um banjo (ecos de Amargo Pesadelo [Deliverance, 1972]?), nunca é tarde para voltar ao seio da família.

Para o bem e para o mal, Inverno da Alma tem todos os tiques do cinema independente atual: baixo orçamento, elenco desconhecido do grande público, ritmo lento, câmera na mão, tremida e desfocada, fotografia escura e filmagens em locação. Como em quase todos os filmes desse "gênero", sente-se uma necessidade de passar a imagem de que se está fazendo algo autoral. Por outro lado, transpira-se a garra dos envolvidos, como se a vida de cada um deles dependesse daquele projeto (o que talvez não seja de todo uma inverdade). No final das contas, Inverno da Alma entrega exatamente aquilo que promete: uma boa história de superação, ambientada num universo bem distante de nós brasileiros, com personagens bem desenvolvidos e com os quais podemos nos identificar e torcer. Mas fica no ar uma sensação de vazio, de que o filme poderia ter ido mais longe. O que, no fundo, talvez sejam as principais características do cinema independente americano.

Comentários (1)

Kennedy | quinta-feira, 15 de Setembro de 2011 - 20:48

Muito boa a crítica. Excelente.

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