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Críticas

Cineplayers

As ideias dos náufragos.

8,5
Deveria, ou melhor, poderia qualquer texto escrito sobre O Jardim das Aflições (idem, 2017) debruçar-se sobre sua celeuma prévia às exibições comerciais, a saber, toda a repulsa de certo segmento da esquerda em relação ao filme, e que teria culminado com uma vontade de interdição do próprio num certo festival pernambucano, bem como a desistência de alguns membros e diretores participantes deste festival, um conjunto de ações proibitivas que contemplaram desde o rebaixamento e redução de seu diretor a um concentrado ideológico dissidente (a este segmento frágil, claro) e fascista, diante do qual se extrai qualquer possibilidade de fala para priorizar o teor meramente político de seu pensamento, passando, finalmente, ao próprio sujeito de interesse, conteúdo do filme, temática – como prefiram chamar essa reta que parte de um alguém-câmera para algo –, diante do qual, também, tentou-se vetar a possibilidade de existência enquanto algo passível de abordagem e interesse, sem que sequer seja preciso mencionar a de fato real, de fato consistente, de fato palpável influência do filósofo e professor Olavo de Carvalho?

Retomando a pergunta em seu fôlego perdido, agora colocada de outra maneira: que espécie de ameaça, que tumulto catastrófico, que agressão vil ao pensamento é esta que se cristaliza em um só homem e faz tremer toda uma parcela de seres que assumem democráticos?; e ainda: de que cartilha advinda dos paradoxais céus, de que código de leis que atravessa não só a política, mas também a arte, de que espaço imaginário e sobre-politizado pode brotar toda uma amalgamação de forças individuais, coletivas, ideológicas, seja de que cunho for, e que possa se munir da grandessíssima autoridade de dizer, das mais plurais e incoerentes formas possíveis, não só que um filme não deve existir, como que a sua existência, que escapou às próprias possibilidades de patrulhamento, é uma violação horrenda da... de quê, afinal? Filmes têm pujança sobre o mundo? Decerto que sim, mas a pergunta não recai sobre suas camadas, seus tons, seus teores, sobre as mãos que os modelam, sobre os fatores sobre os quais inferem; é algo mais basilar, algo que perpassa a própria necessidade de fazer cinema, mas atinge-lhe ainda mais abaixo: por que, enfim, se encontram alguns sujeitos magicamente incumbidos da tarefa de impor ou não limitações às necessidades que outros indivíduos têm de simplesmente fazer filmes?

E o que é, afinal, este filme? Não se sabe. É um filme sobre um homem? Sobre um pensamento? Ele pode sê-lo tanto quanto pode ser, ao mesmo tempo e todos de uma vez só, uma obra sobre um homem-pensamento, porque já em seus meados, quando toda a montagem havia costurado de maneira assombrosamente sutil as ligações deste homem com seu próprio desejo de entender o real em sua complexidade, surge uma ideia de filosofia que independe de qualquer bagagem espectatorial, que recai sobre aquele leitor que esgotou Heidegger ou Ortega y Gasset, assim como banha aquele que pouco se interessa pelo pensamento ou pela filosofia, e esta ideia tem o impacto de um relâmpago de alinhamento: é a conjunção mesma, moldada em individualidade, solidificada em persona, confeccionada na tessitura do tempo enquanto sopro breve de existência diante da qual se faz algo de si para si, de um indivíduo com a sua vontade de saber, e cuja junção não resulta puramente o um que é dois (o homem que se torna homem sábio, o homem que se torna homem da filosofia, etc.), mas antes o dois que é um: pelo mérito da filosofia, práxis e teoria abraçados como siameses, e por paradoxo, geograficamente localizáveis num corpo-matéria só.

Aspecto peculiar a se notar aqui, posto que ao documentário o olhar crítico hoje hiper-politizado, sempre em busca de dissidências que se sustentem por si sós, parece olhar de lado para o quanto a forma pode emoldurar, assumir, estilizar, ampliar em possibilidades de campo sintático o próprio alcance “conteudístico” do documental, o que parece acontecer com O Jardim das Aflições é que essa câmera sempre observacional, sempre propensa a deixar que o sujeito professoral fale, quase sempre disposta a apagar os próprios vestígios de sua enunciação precisamente por pouco se mover nos momentos de fala, e mover-se com caráter exibicional e alargador diante do mundo nos arredores do lar de Olavo – esta mesma câmera que aparenta “inofensividade” acaba por regredir em positividade, retornar, extraídos os tons hierárquicos da antropologia que se mesclou às primeiras tentativas de documentar eventos e presenças extraordinárias e exóticas ainda nos fins do século XIX, a uma espécie de primitivismo operístico do meio documental.

Amputada a narração cheia de saberes de um terceiro, retirada a tonalidade amostral e “exotizadora” das tomadas, aniquilada a ínfima possibilidade de que qualquer um fale no lugar de (que os personagens falem sobre Olavo não contradiz isto), resta, como se num retorno à própria ideia de que a um filme basta uma câmera e um sujeito, ainda que isto pareça escandaloso ao documentário enquanto meio que guarda seus sortilégios para disfarçar a construção sobre um real já plural por si mesmo, literalmente aquilo que se vê: um indivíduo falante, ele objeto de interesse, e outros que por ele se interessam enquanto ouvintes silenciosos. Tudo isto, aliás, torna nada casual a cena em que familiares e membros da equipe se mostram por trás de uma segunda câmera, sentados, pacientemente em escuta, olhos fixos, corpo imóvel, enquanto o professor, em gestos parcos, sem gaguejar sequer uma vez, seguindo um fluxo quase monstruoso em coerência, consistência, abrangência e poder, fala. Puramente fala, e poucas vezes dentro do documentário foi tão prazeroso puramente ouvir.

Se Eduardo Coutinho se notabilizou por filmar seres em estado de exceção, e talvez seja a ele que devemos o mais louvável agradecimento por ter inscrito na prática documental, em consistência e multiplicidade, a presença destes indivíduos extra-ordinários, Teófilo me parece resguardar parcela atenciosa de seu apreço por permitir que o professor, afinal, simplesmente fale. Porque colocar-se no mundo se produz pela fala e pela prática do que se diz, a Olavo é permitido nada mais que dizer(-se), e ao mundo que o compõe é permitido direito à vista; porque são as ideias dos náufragos aquelas últimas proferidas, aquelas em que o último vislumbre é o da própria salvação por meio da consciência do pensamento, é à filosofia que aquele sujeito se agarra, e é a partir dela que parametriza a própria vida-ação. Não se sabe bem porque cineastas filmam, de onde advém suas necessidades, mas elas decerto existem, e porque é preciso dizer algo, filma-se (e há uma devolução dialética não menos importante: porque é preciso filmar, deixa-se que os outros digam).

Comentários (3)

Gilberto C. Mesquita | segunda-feira, 06 de Abril de 2020 - 23:41

Excelente texto, com comentários pertinentes e inteligência demonstrada. Parabéns!

Daniel Lucena | segunda-feira, 10 de Agosto de 2020 - 01:29

Escreveu, escreveu e não disse nada. Exemplo perfeito de como sujar as águas para fazer parecê-las profundas...

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