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Críticas

Cineplayers

Fábula e artifício.

7,0
Para um determinado público cinéfilo, formado por plateias específicas antenadas com a modernidade, a ideia de cinema contemporâneo é bastante cara. O que não se refere a toda produção moderna, mas a um recorte distinto dela. Um recorte sempre em construção, que se vale de apostas e investimentos em filmes e diretores, como que dentro de uma imensa bolsa de valores, com obras e realizadores podendo valer menos ou mais em dez ou vinte anos (lembrar que numa década nem tão distante como a de noventa, Peter Greenaway e Krzysztof Kieslowski estavam na crista da onda, e drasticamente diminuiria o número dos que os defendem). Praticar a crítica em torno do cinema contemporâneo requer todo um cuidado e atenção para que, evitando-se afoitezas, não se caia no que podem ser invenções de um grande mercado cinematográfico internacional, forjado por curadores, cineastas e críticos que continuamente absorvem e disseminam as tendências em moda desse mercado. John From é um filme que parece reunir qualidades e limitações do cinema contemporâneo.

Há um fascínio natural que emana no universo jovem de John From. Rita (Júlia Palha) em suas férias de verão se apaixona por um vizinho fotógrafo alguns anos mais velho, novo morador do bairro. O caso típico de quem valoriza uma recém-descoberta aparentemente distante e inacessível. Há toda uma primeira parte que se dedica a construir um ambiente, a rotina dentro de casa e a das férias. Os encontros com a amiga, os namoros e as reuniões juvenis, bem como a liberdade que bem pode ser prisão e isolamento no contato com a tecnologia e seus aparelhos. Um esforço em capturar uma presença para muito além de registrar imagens na tela. 

A câmera beira um deslumbramento em acompanhar a menina (ou rapariga, como os lusitanos costumam chamar), ainda que longe de qualquer lascívia ou momentos de mau gosto, mas propensa em cativar o espectador. A inocência sonhadora e um tanto ingênua da adolescente apaixonada vai encaminhar progressivamente o filme à fantasia, o que inclui momentos lúdicos como o do carro circulando sozinho sem que ninguém o dirija. Um mundo real sendo tomado por um imaginário, em que o bairro é transformado na ilha do Pacifico Sul, tema da exposição que o fotógrafo recém-chegado vai apresentar permitindo a aproximação da moça.

O diretor João Nicolau é um dos responsáveis pela produtora O Som e a Fúria, cujo parceiro mais famoso é Miguel Gomes, não sendo difícil associar John From a filmes como Aquele Querido Mês de Agosto (idem, 2008) e Tabu (idem, 2012): em todos há narrativas que se sobrepõem, geralmente em duas partes, que buscam estabelecer soluções e conexões entre elas, tempo e espaço que se confundem, ou embaralhamentos por vezes gratuitos entre níveis diferentes da realidade. Todos eles objetos mais ou menos exóticos, em registros entre o artifício e o natural, a fábula e a contemporaneidade. Há muito artifício em John From, como fogos que procuram chamar a atenção sobre si mesmo, ou festim cujo poder de alcance esta longe do fulminante, até que a narrativa abrace como uma consequência natural uma espécie de esvaziamento. 

O que se acrescenta à uma série de truques manipulados com algum talento e astúcia, que pode fascinar, mas cujos efeitos inevitavelmente se desvanecem depois de uns anos. Pode não ser justo que se aproxime o de João Nicolau aos filmes citados de Miguel Gomes, mas inegável que estes se desvalorizaram muito na memória de grande parte do público cinéfilo (com a repercussão de sua recente trilogia em torno dos contos das Mil e Uma Noites se configurando uma decepção logo de saída). Trucagens são elementos recorrentes no cinema desde os tempos de Meliés, porém o que nos filmes lançados pela O Som e a Fúria se nota é sobretudo uma realidade corrompida ─ e o prazer proporcionado por uma realidade corrompida não se sustenta por tanto tempo ou em revisões. Nenhum problema na utilização de elementos de fantasia ou sobrenatural no cinema, mas poderia ser produtivo para essa nova geração de realizadores portugueses experimentar bem mais com a ficção realista.

Comentários (1)

Declieux Crispim | terça-feira, 24 de Janeiro de 2017 - 08:06

Texto primoroso, Vlademir Lazo.

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