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Críticas

Cineplayers

Linklater e o filme de formação.

8,5
Houve uma vez Jovens, Loucos e Rebeldes (Dazed and Confused, 1993), um filme que não fez lá grande sucesso nos cinemas mas que com os anos acabou virando um verdadeiro filme de culto. Sua representação da vida cotidiana dos anos 70 - juventude, costumes, música - causou verdadeira sensação entre nostálgicos que experimentaram ou só ouviram falar sobre a época. 

Segundo filme do texano Richard Linklater, então cineasta em ascensão após  o debut Slacker - indicado para o prêmio principal de Sundance, Jovens, Loucos e Rebeldes foi um dos filmes mais marcantes da chamada geração X e seu contexto cultural conturbado ao falar da geração jovem anterior e suas questões incômodas como o sexo e os relacionamentos, a interação anárquica com os mais velhos e as autoridades e as novas teorias que regiam o mundo além das tradicionais.

Vinte e três anos depois, Linklater não é mais um cineasta em ascensão: é o diretor de clássicos recentes como a trilogia Antes do Amanhecer, Antes do Pôr-do-Sol e Antes da Meia Noite, inovou tecnicamente em Waking Life e O Homem Duplo e causou um enorme barulho com o longo e ousado em sua proposta Boyhood - Da Infância à Juventude, filmado ao longo de 12 anos, além de projetos menores, mais despretensiosos e muito bem aceitos, como Escola do Rock. E eis que então ele escolhe dirigir, já em plena maturidade, Jovens, Loucos e Mais Rebeldes!!, uma denominada “sequência espiritual” do primeiro filme. 

Ambientado em 1980, quatro anos depois do primeiro filme, Jovens, Loucos e Mais Rebeldes já conversa mais com a geração dos anos oitenta e por conseguinte com a atual. As referências do primeiro filme já foram todas trocadas: já não temos mais a nata do rock and roll (KISS, Black Sabbath, Deep Purple, Alice Cooper), mas sim um mundo musical - muito importante para Linklater - bem mais diversificado e fluido, habitado pela disco music, o country, o hardcore e o rap. 

Ao invés de se passar em um dia feito o primeiro, o filme se passa em pouco mais de três dias, seguindo o batismo de fogo de Jake, que acabou de sair da escola secundária, foi para a faculdade, está no time de beisebol e conhece os espirituosos colegas de quarto, veteranos da faculdade que compõem o resto do time. E é isso: todo o resto do filme se baseia em ouvir música, pequenas competições diárias de habilidade e resistência, pregar peças nos desavisados, fumar e beber quantidades surpreendentes de álcool e maconha e relações sexuais casuais. Jake também fica atraído por Beverly, caloura da Faculdade de Artes que não se intimida com as provocações do colega dele, mas como todo personagem nos filmes de formação de Linklater, ela também tem sua curva de evolução dramática conduzida de modo inesperado, de modo mais simples do que nos habituamos. 

Formação da identidade e sua relação com o tempo é basicamente tudo para Linklater: está de alguma forma no casal Jesse e Celine na trilogia “Antes…” que tem que de quando em quando reinventar seu singular relacionamento. Está no cerne de Boyhood, da infância de Mason Evans até sua entrada na faculdade. Testemunhamos seus personagens inventando a si mesmos como indivíduos através dos rituais sociais que Linklater tanto adora.

Em seus filmes, seu “mundo musical” faz parte de sua identidade. Se nos anos 90 o diretor lembrou de sua adolescência na segunda metade dos 70 para escrever uma carta de amor sem frescura ou moralismo para a geração adolescente seguinte dos anos 90, refletindo sem pudor sobre hedonismo e a contestação da época, aqui ele fala dos jovens adultos que sem identidade definida, ouvem Van Halen, Sugarhill Gang, Neil Young, Cheap Trick, Michael Jackson, X, Devo, Blondie, Rolling Stones, Donna Summer e The Clash. A identidade dos mesmos é tão diversa quanto seu gosto musical - festeira, angustiada, hostil, empática, superficial, imbecil e intelectual. Uma geração tão fluida quanto a dos jovens que irão assistir ao filme e sem saber exatamente a razão, sentirão certo nível de identificação com os simpáticos idiotas vistos em tela.

Os filmes de fraternidade/sororidade se baseiam frequentemente na ideia que não há época na nossa vida como a época que acabamos de entrar na faculdade, época para cometer todos os erros e acertos possíveis que um jovem adulto possa se permitir. Com Linklater também é assim, mas ele leva a ideia um pouco mais além. Normalmente os filmes revolvem ao redor de uma ideia de progressão dramática e psicológica que dão conta de certos conflitos que permitam classificar o filme dentro de um horizonte de expectativas. Pensemos nas tradicionais narrativas do protagonista apaixonado tentando reparar algum tipo de desentendimento com os parceiros, ou no personagem que falha com seus amigos e faz de tudo para mostrar o lado positivo do seu caráter, ainda sem perder o bom humor frequentemente grotesco e baseado em escatologia e irritação constante do outro. 

Mas como já dito, com Linklater não é bem assim e é um pouco além. Ele retira as conflituosas e intensos dramas de amor que em tese atrairiam determinado tipo de público e deixa para que os conflitos internos sejam resolvidos apenas no campo dos ritos de formação. Por isso o filme não é progressivo, mas sim episódico, mostrando não a trama mas sim os recortes de um dia. E nos mostra as expectativas que cada personagem tem para a vida enquanto o mesmo fuma maconha, discute, conversa ou joga. Tudo está nos pequenos diálogos e nos pequenos momentos - a falta de adequação, a busca por um propósito, a tentativa de pertencer ao padrão para logo em seguida mandá-lo às favas, a lealdade e o egoísmo, o exibicionismo, as rotinas exaustivas.

E é isso que torna o filme de Linklater tão carismático, fluido e, acima de tudo, divertido. No final da adolescência e início da idade adulta, não há julgamento moral, protagonistas e antagonistas para o que eles estão fazendo. São indivíduos ainda definindo seu próprio mundo, inventando seus próprios valores. Não à toa, as punições raramente vem externas ao círculo de amigos, mas sim do próprio grupo; as maiores críticas não vêm dos pais, mas dos amigos; os momentos de maior abertura vem com pessoas conhecidas a poucos dias, e não com relações longevas e de sangue. 

Herdeiro e praticante da dramaturgia do cinema indie que o início da sua carreira tornou tão característica, basear a atmosfera na música, valorizar os pequenos momentos sobre o grande arco e celebrar valores frequentemente desprezados como essenciais na formação de um indivíduo - com suas concepções tão profundas quanto os atos mais nobres e mais intelectuais - é a tônica de Jovens, Loucos e Mais Rebeldes!!, praticamente inteiramente trabalhado não na metáfora, mas na síntese, na concepção significante e não na necessidade de transmitir-se um recado. Assim como seus personagens, recorta um momento, fala sobre ele, o extingue e passa para o próximo. Assim que se forma uma visão, um indivíduo, seus momentos e, como não podia deixar de ser, seu filme.  Por isso que é um dos poucos de um clube seleto que, quase trinta anos depois, ainda mantém a relevância e o vigor intactos: novamente, como de hábito na filmografia de Linklater, o comum é a questão mais importante e a banalidade a mais complexa das filosofias.

Visto no Festival do Rio 2016

Comentários (2)

Paulo Faria Esteves | segunda-feira, 17 de Outubro de 2016 - 14:23

Gosto muito de Linklater, é bom ver notas tão altas para o novo filme dele. 😁

Daniel Mendes | sábado, 07 de Janeiro de 2017 - 05:56

Acho o cinema do Linklaeter meio morto (gosto desse e do anterior, mas com algumas considerações). Bernie é mediano, o ponto forte está na ternura e simpatia dos dois primeiros filmes da trilogia do dia (Antes de Amanhecer e Antes do Por do Sol).

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