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Críticas

Cineplayers

Entre a comédia sensível e o drama polêmico, uma estreia promissora.

8,0

Uma carreira cinematográfica de sucesso não depende de uma forma preestabelecida, obviamente. No entanto, surpreende quando um novo cineasta surge pouco preocupado em simplesmente criar histórias de agrado geral (ao público maciço, responsável pelo retorno financeiro nas bilheterias, e a executivos, que viabilizarão o projeto), mas em prezar pelo caráter artístico e reflexivo de sua obra.

Para tal, o diretor e roteirista estreante Raphael Aguinaga precisou quebrar paradigmas: embarcou para a Argentina, onde há leis de incentivo mais consistentes e se filma mais barato, tirou bom proveito da experiência cinematográfica do país vizinho e, lá, bancou seu primeiro filme sozinho. E o resultado é uma estreia promissora: num exercício dramatúrgico formidável, Juan e a Bailarina (La Sublevación, 2011) é uma mescla de drama e comédia primordialmente sensível, porém corajosamente proposta a discutir temas polêmicos – como as quase sempre contrapostas e aqui reunidas religião e ciência.

Após a morte do filho, uma lúcida senhora, Alicia (Marilu Marini), sente a maior dor de sua vida quando é afastada do neto pela nora e deixada na porta de um asilo. Ali, a ex-bailarina tem dificuldade de se integrar aos outros velhinhos, reclusos, e de adaptar-se a uma vida restrita cujos principais (talvez únicos) acessos ao mundo exterior são uma televisão e um radinho de pilha. Assim, quando esses meios de comunicação precariamente informam que o filho de Deus foi clonado, contraiu séria doença e precisa de ajuda, os religiosos internos da Nossa Senhora da Misericórdia terão nessa notícia mais que uma oportunidade de comprovar sua fé, mas de resgatar uma esperança há muito perdida.

Esse curto resumo já indica o crescente na auto-estima dos personagens, mas, durante o longa, essa transição é feita de maneira particular e visualmente interessante: a adoção de um ar soturno nos silenciosos minutos iniciais na fria Buenos Aires, enquanto Juan (Arturo Goetz) cheira um lenço perfumado ao som de um triste tango, cria um quadro belíssimo e autossuficiente na ilustração de toda dor e nostalgia que afeta seus protagonistas. Quando o dia nasce, então, deparamo-nos com um hilário e otimista Miguel (Luis Margani) envolto por um ambiente sempre iluminado pela luz do Sol, em trabalho louvável do diretor de fotografia – que ainda opta por um tom que resvala no sépia, a realçar com as antigas instalações em que vivem os também longevos personagens.

A preocupação de Aguinaga em explorar o cotidiano do asilo com minúcia aproxima-nos dos habitantes daquele lugar, de seus dramas, de sua dura realidade, o que, curiosamente, deflagra situações divertidíssimas. A propósito, a leveza e a comicidade dos diálogos encontram-se em plena harmonia com o carisma desses senhores, sendo um deles o protagonista de uma das cenas de banho mais comoventes do Cinema. A carinhosa concepção desses velhinhos – ternos, espertos e a proferir sacadas hilariantes, assemelhando-se bastante aos sagazes pescadores de A Grande Sedução (La Grande Seduction, 2003) – também formam um contraponto abissal com a imagem estereotipada entregue ao jovem vilão “A Bruxa” (Pablo Lapadula), o que torna ainda mais evidente a homenagem do realizador aos representantes da terceira idade.

Nesse momento, o cineasta toca em ponto crítico, sobre o tratamento dispensado a idosos, que no auge de suas vidas, de sua sabedoria, são abandonados pelas mesmas pessoas que deveriam ser gratas por sua criação. E este, mais que esperta analogia com um Criador que clama por salvação, é ensejo para a inclusão de subtemas mais controversos, porém igualmente baseados em importante reflexão.

Quando surge um clone portador do HIV, o diretor, simultaneamente, destaca os avanços da ciência e questiona se os laboratórios têm mais empenho em desenvolver uma cura para a AIDS ou em capitalizar na venda de coquetéis para seu tratamento. Ainda mais "complicados" são os questionamentos religiosos: em sua esperada vinda à Terra, o Salvador clama pela ajuda da população. E é interessante perceber que os fiéis que atendem a seu chamado também são salvos – no caso, os velhinhos da Nossa Senhora da Misericórdia, que, inconscientemente, se desprendem de limitações físicas e emocionais (impostas por quem lhes abandonou) –, quadro que mostra que um fato externo, proporcionado pela Igreja Católica, é mera motivação, sendo a real libertação alcançada quando os próprios seguidores despertam em si o sentimento de superação. É a fé sobreposta à religião.

Inteligente, Aguinaga explora essa subtrama espinhosa com surpreendente naturalidade, optando por mantê-la em aberto (o que sugere um novo capítulo). O foco é uma narrativa descontraída, até mesmo convencional, e seu desfecho otimista frisa a importância que sentimentos como perseverança e esperança podem ter na vida de pessoas equivocadamente consideradas inaptas – impacto esse que as permite rebelar-se; apaixonar-se, por outrem e pela vida, novamente. E ao testemunharmos a alegria nos olhos dos atores, divertindo-se a valer num ato final que remete a Cocoon (idem, 1985), percebemos que, dentro daquela ficção, durante as filmagens, o termo “melhor idade” possa ter tido algum lugar na realidade, legitimando a belíssima mensagem de Raphael Aguinaga.

Comentários (2)

Alexandre Koball | sexta-feira, 12 de Abril de 2013 - 21:28

Para poucos assistirem. Mesmo em home-video a distribuição é limitadíssima.

Tiago Cavalheiro | sexta-feira, 12 de Abril de 2019 - 23:05

Acaba de entrar no Prime Vídeo da Amazon!

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