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Críticas

Cineplayers

Símbolo de uma era que ainda estava por vir.

9,0

Raros são os filmes que tornam-se tão emblemáticos, com cenas e detalhes tão marcantes, que ficam maiores do que si mesmos: ostentam símbolos que não mais o representam simplesmente, mas remetem ao meio, viram sinônimo da mídia pela qual chegaram ao mundo. A imagem de Carlitos e a dança dos pãezinhos em Em Busca do Ouro, Marilyn Monroe com as saias esvoaçantes em O Pecado Mora ao Lado, Gene Kelly e seu número musical em Cantando na Chuva, Marlon Brando vestindo roupa de couro sobre a motocicleta em O Selvagem, um alucinado candidato à presidência discursando em Cidadão Kane, e um novato James Dean, com cigarro na boca e jaqueta vermelha dentro de um carro à noite, prestes a tirar um racha rumo ao precipício em Juventude Transviada. Quem não reconhece essas imagens como marcos do cinema?

Com o título original de Rebel Without a Cause, ou “rebelde sem causa”, como seria se o nome deste longa no Brasil não fosse o tal Juventude Transviada, é uma obra que cristalizou um momento único na cultura, seja ela encarada como pop, cinematográfica ou social. Um instante ímpar, pois unia de uma vez só o encontro de dois dos maiores errantes, perturbados e iconoclastas incompreendidos no cinema e na vida real. James Dean, o jovem ator que morreria prematuramente em circunstâncias não totalmente esclarecidas até hoje; e Nicholas Ray, o “diretor maldito” de Hollywood, o cineasta que filmou o descompasso entre o homem e o mundo – Jean-Luc Godard dizia que o diretor ideal seria a fusão entre Nicholas Ray e Anthony Mann. O resultado expressado no filme confunde-se com a realidade, e o clima de desordem e desilusão, a sensação de tragédia iminente estranhamente estende-se a vida de seus realizadores. Completam o principal time do filme a atriz Natalie Wood e o ator Sal Mineo. Assim como os dois primeiros, estes também morreram prematuramente, em circunstâncias nada triviais.

Juventude Transviada conta a história de Jim Stark (James Dean), garoto-problema que arranja confusão por onde passa, obrigando sua família a sempre mudar de cidade na esperança de que o filho tome juízo e encontre seu lugar na sociedade. A partir de uma insatisfação juvenil aparentemente inexplicável, surge um conflito de gerações, o chamado generation gap que salta aos olhos de forma contundente: a total ausência de afinidade entre pais e filhos, a deterioração da relação familiar anuncia a vinda de uma nova geração, com novos valores e interesses. Após ser desafiado pelo valentão do novo colégio para um duelo de carros num precipício que acaba em tragédia, Jim aproxima-se de Judy (Nathalie Wood) e de seu amigo fiel e solitário Platão (Sal Mineo), até pelo fato de compartilharem da mesma onda que parece tomar conta da mocidade daqueles idos anos 50: a solidão advinda do rompimento com um mundo que não lhes corresponde mais.

Nicholas Ray em Juventude Transviada preocupou-se em transpor para as telas a falência de várias instituições sociais aparentemente caducas e desconexas com os novos tempos. Em cada cena, uma a uma é colocada em xeque. Conceitos como polícia, família, escola, ética, honra parecem pelas lentes da Ray dignos de piada. Momentos para figurarem essa descrença mesclada à fina ironia não faltam. Jim Stark bêbado, uivando e zombando das autoridades na delegacia logo no início; um pai e marido que ajoelha-se na frente de Jim para limpar as sujeiras domésticas amedrontado com a masculinidade da esposa; um inspetor de colégio, indignado com o fato de um desavisado novo aluno estar pisando no brasão da escola; um protagonista, que após ter sido confrontado numa luta de canivetes, é intimado a comprovar sua “hombridade” num racha de carros. Qual a ordem manterá um mundo risível assim?

A década de 50 foi uma era de transformações sociais, e o mundo vivia o reflexos do pós-guerra. Após o baby boom, a sociedade norte-americana via uma enxurrada de jovens crescerem e, pela primeira vez, muitos adolescentes não tinham que trabalhar para ajudar suas famílias, e opções como ir para a universidade tornaram-se mais comuns. Além da escola, estes jovens tinham poucas responsabilidades, e com o advento da ajuda de custo eles adquiriram um poder de compra e de decisão maiores. Em contrapartida, esse novo nicho social apresentou suas colateralidades. O reflexo estava na música (logo aqui surgia o rock ‘n’ roll – e toda a filmografia associada a ele), na pintura (a action painting de Jackson Pollock e a pop art de Andy Warhol), e estava mais evidente ainda na literatura. Juventude Transviada é, em certa medida, o correspondente de ‘O Apanhador no Campo de Centeio’, de J. D. Salinger, no cinema: trazem como protagonistas jovens inaptos a seguirem padrões sociais pré-estabelecidos. A contracultura, a geração beat, os hippies, a invasão britânica, maio de 68... a lista de eventos é enorme, mas não há dúvida de que grande parte da gênese das transformações sociais iminentes já encontrava parte de seu prenúncio por aqui.

Exibido no formato Cinemascope com toda sua horizontalidade característica, cada plano conta com uma cuidadosa arquitetura de quadro típica de Ray. Suas cores vívidas representam a ímpeto juvenil e a vivacidade de uma jukebox. O vermelho, cor sugestiva comumente empregada pelo diretor, veste um protagonista portador de uma inquietude febril e algo sensual. Nicholas Ray conferiu dignidade à adolescência em Juventude Transviada. Em uma das raras ocasiões do cinema, os dilemas juvenis, a insegurança, a insatisfação e a agressividade à flor da pele não são tratados de forma rasa, buscando a identificação fácil, estereotipada, quando não idiotizante, como em muitos filmes norte-americanos atuais – de American Pie a Velozes e Furiosos.

Com a imagem de James Dean, seu apelo icônico e sua presença encantadora, Ray forneceu ao mundo o arquétipo definitivo do herói pop. Pense nos maiores ídolos adolescentes, daqueles tempos e de hoje em dia: Elvis Presley, John Lennon, Brian Jones, Jimi Hendrix, Janis Joplin... passando por Kurt Cobain, Amy Winehouse e Pete Doherty. Traços da composição do personagem de Jim Stark/James Dean estão presentes em cada um deles: rebeldia, inconformismo, inadequação, vida meteórica e autodestruição. E os limites entre a ficção de Juventude Transviada e uma verdadeira história social parecem cada vez mais tênues.

Comentários (1)

Alan Principe | sexta-feira, 01 de Fevereiro de 2013 - 22:22

E como o James Dean era gracioso!

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