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Críticas

Cineplayers

Kumiko, ou o atraso inescusável da narrativa.

6,0
Em seu A Linguagem Secreta do Cinema, Jean-Claude Carrière fala de certa evanescência do roteiro para a imagem, espécie de transposição daquilo que é texto escrito para o que é texto visual, e eleva tal ato a um dos mais hercúleos do fazer fílmico, passagem de uma ideia que se tornou escrita e que deve fazer convergirem todos os elementos numa sequência de cenas mais ou menos como anteriormente se havia concebido – e esse grau de aparição, de concretude, em si, já é polêmico. Para Kumiko, A Caçadora de Tesouros (Kumiko, The Treasure Hunter, 2014), proponho a ação inversa: que se tente trazer tudo aquilo que é imagético para uma ordenação escrita, um roteiro a ser apresentado num pitching, ou seja como for, mas que deva sobretudo ser pensado como ideia bruta. O que há, ali, senão quase cinquenta minutos iniciais, quase metade de um corpo inteiro se movendo em círculos, indo a lugar nenhum, uma mastigação quase eterna travestida de introduções à personagens?

Entre a Kumiko que Zellner concebeu e a que seguimos pacientemente, parece ter havido uma transferência esquizofrênica, uma sequência de má escolhas ou a tentativa mesma de parir uma quimera, uma adulta que é, ou melhor, emula ser excêntrica, excessivamente infantilizada e patologicamente retardada na duração da parte de sua história que nos resolveu ser contada. Fala-se nessa seção de uma vida porque tudo aquilo que a precede (precede o que tem início com o visual, na verdade) se torna, curiosamente, um calo repentino, um incômodo narrativo tão pestilento que não só exige o que veio antes – a saber, quem é a sua mãe, para além das insistentes investigações sobre um futuro casamento e o dinheiro da menina, como foi a sua criação, como Kumiko chegou a ser o que é? –, como também que haja um mínimo de complexificação, de saída para os círculos em que Zellner se prende, e que nada justifica, sequer uma mais que imaginária tentativa de reprodução de uma temporalidade que seja mais afeita aos tempos orientais. 

E não se pensa aqui numa possível discussão sobre locais de fala, efeitos errantes de articular, ao menos em sua metade de duração, uma mulher japonesa inserida numa rotina japonesa e com problemáticas tipicamente locais (teria Kiyoshi Kurosawa, por exemplo, mais segurança ao lidar com o próprio país, do que um americano?), atitude que certamente agradaria os que se aproximam da política para discutir o fílmico; não, a derrapagem colossal de Zellner é insistir, impregnar o espectador de uma sensação asfixiante de que a maior enfermidade de que o Japão sofre é o apego ancestral à família, as ideias obsessivas de sucesso, as posições sociais e individuais das mulheres dali, quando na verdade sabemos, desde o início, que não é por aquele caminho que ele deseja seguir. Onde quer que Kumiko esteja, e incrivelmente até por vias não verbais – uma aparente colega de escola, de idade próxima a sua e já casada e com filhos –, há um bombardeamento de signos de fracasso. Da repetição, o mal estar atravessa a tela.

Eis que tudo isso, toda a exaustão por não se adaptar, poderia muito bem ser resumida a um quarto do tempo despendido de fato. Mas eis também que Kumiko não é só a mulher frustrada, figura aliás presente desde a gênese do cinema japonês: há certa inocência em sua elaboração metódica e busca pela mala de dinheiro que assistiu, numa fita, ser enterrada em Fargo – Uma Comédia de Erros (Fargo, 1996), certo magnetismo, fascínio extremamente subaproveitado pelo apelo de realidade que a cena tem e de que o cinema (ou parte mais que considerável dele) sobrevive. ''Isso não é real como um documentário, um reality show ou uma notícia'', tenta confortá-la o policial americano quando Kumiko já inicia a busca em solo americano. Birrenta, obtusa de mentalidade, ela insiste e chora que não é falso. Onde foi parar todo o potencial de realidade e mentira, essa discussão interminável que o cinema elevou à níveis estratosféricos e que é na verdade o esqueleto, o motivo e o apelo de toda a trama? O germe está ali, ninguém pode negar; só nasceu amorfo, assim como nasceu Kumiko para quem a vê.

É perturbador como se pode quase ouvir o espectador recém-saído do útero da sessão dizer: ''não sei se gostei, mas a fotografia é bonita'', como é quase certeira a existência de uma cota de filmes para os quais a incerteza do gosto se mistura ao belo trepidante. E o que redime Kumiko (personagem/filme) pode muito bem ser precisamente esse belo da busca de uma menina tola por um tesouro, busca para a qual diz a si mesma ser uma conquistadora espanhola em busca de preciosidades na América. Agora, que parte dessa beleza seja uma dívida do cinema, e criada, também, por ele, a certo um prazer pelo olhar, aí é uma discussão para aqueles cuja perícia em muito solapa a de Zellner.

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