Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

A arte de contar histórias

7,5

Se tem algo que Dan Reed consegue fazer, ao final de Leaving Neverland, é nos deixar repletos de perguntas. Algumas até dizem respeito a seus personagens, seu enfoque e as questões no qual a opinião pública se debruça há mais de 20 anos. A grande maioria, no entanto, passa numa análise mais aprofundada em relação a matéria prima do Cinema, a arte de contar histórias da melhor e mais convincente maneira possível, que vem também a ser um berço não onde o documentário nasceu, mas provavelmente onde ele se desenvolveu e convencionou; exatamente isso, a convenção transformou um gênero cinematográfico em produto típico de 'storytelling', sem aprofundar um caminho livre a isso, liberdade essa que não é de sua gênese. Ora, não foi isso que mostraram Dziga Vertov e Robert Flaherty há 100 anos atrás, e não é isso que expande o documentário. Ainda assim, a história contada ainda fascina, e abre um mar de projeções mentais através de suas minúcias descritivas.

Reunir relatos acerca de quase 30 anos de um grupo de pessoas, inserir imagens e reportagens de arquivo e da época contada, e unir a esses elementos voos de drones por cidades e bairros espalhados em diferentes continentes seriam o suficiente para um material de interesse artístico? Sim, se tais relatos expandirem seu material audiovisual para além do que foi captado; não é o que consegue, por exemplo, o celebrado Three Identical Strangers, que apenas revela bastidores de um caso familiar-policial, sem acrescentar relevância filmica aquelas 'talking heads' (jargão cinematográfico que define um documentário onde apenas 'cabeças falem', e nada mais). Leaving Neverland ainda consegue, provavelmente por coincidência, fluir em tema e discussão a um outro produto da mesma HBO, lançado há um ano atrás, The Tale, de Jennifer Fox.

O filme de Jennifer também fala sobre pedofilia e de como esses relatos, internos e externos, são organizados na nossa memória, e essas talvez sejam algumas perguntas que Reed nos faz, como descrito no início do texto: o que fica do passado? Quando a lembrança é apenas um material intocado e volta a tona, o que retorna junto é o acontecimento real ou uma imagem decalcada do real? No fundo isso também é a constituição do documentário per se, a re-exposição de eventos já acontecidos, que quando recontados já não são mais a realidade, mas uma versão dela. A forma como Reed filma esse encontro com duas famílias que acusam Michael Jackson de pedofilia e abuso sexual é o que interessa do ponto de vista do cinema, todo o resto é matéria de tabloide. E a proposta da produção, da leitura corporal de seus indivíduos, da forma como eles escolhem mostrar e o que mostrar de suas experiências, é o que trás o interesse nesse material.

São duas proposições quase distintas. Uma mais despojada e direta, a outra mais dramatizada e carregada de cor. Em uma família, a de James Safechuck, há uma abordagem meio crua e desglamourizada do todo e das situações - não a toa parte dele mesmo o início da aborda fé sexual, brusca em discurso. No lado de Wade Robson, a própria natureza que sua vida tomou com o passar dos anos define uma certa propagação da pose, dos gestos mais pensados e das frases mais explosivas. De um lado uma pressa muito natural, do outro uma propriedade em cinematografar cada momento. Ambos se encontram nos danos psicológicos e factuais de suas trajetórias, arranhadas pela violência. O diretor filma os dois núcleos com igual interesse, e ambas servem à dramaturgia em situações também opostas: surpreende a naturalidade dos "esquecimentos" e das superficialidades, assim como a riqueza de detalhes de natureza imagética a sair do acesso às memórias de uma criança de 7 anos.

O filme não deixa de considerar temas como a busca pelo holofote a qualquer preço, assim como passagens polêmicas como James e Wade admitirem terem se apaixonado por Michael, as contradições que eles acabam por cair a respeito da compra de bens pelo astro para os adultos, que enriquecem e complexificam as narrativas para além do que já conhecíamos de concreto. Mas esses elementos apenas enriquecem o olhar para o que o filme tem de mais cinematográfico, que é essa matriz primal da arte de contar histórias, absorvida pelo documentário das tradições dos povos antigos ao redor da fogueira. A intensidade dos relatos como base influenciadora do espectador e de como reconfigurar o próprio poder de sedução para hipnotizar as plateias. Aos poucos, Dan Reed vai sutilmente tomando partido de um dos lados, ao perceber qual "história está sendo melhor narrada".

Nada mais humano do que observar duas vitrines e se atrair pela que oferece o maior número de elementos, ainda que um espaço limpo também tenha sua fixação. Infelizmente, falta o contraponto à argumentação de 4h de duração, restrito a visão meio histérica e estereotipada de fãs de Michael Jackson na Internet, de maneira rápida e sem qualquer dimensionalidade. Assim sendo, o jogo de espelhos proposto por Reed tem como proposta expor um dos maiores astros da música de todos os tempos em seu lado mais inumano, mas acaba acrescentando em sua mistura a captura do quanto de 'pão e circo' existe em todos os lados de todas as histórias narradas pelo cinema, inclusive e ironicamente também o dele. 

Comentários (0)

Faça login para comentar.