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Críticas

Cineplayers

Uma biografia que foge do conformismo. Assim como os retratados.

7,0
Criado por Marcelo D2 e Skunk, o Planet Hemp foi uma das bandas fundamentais da década de 90. Sua mistura de rap, reggae, rock and roll e hardcore punk nos três álbuns de estúdio, Usuário, Os Cães Ladram Mas a Caravana Não Pára e A Invasão do Sagaz Homem Fumaça, foram além de traduzir as tendências musicais do momento para o português, como o rap-rock do Rage Against The Machine e o funk metal do Faith No More: colocou um Rio de Janeiro raivoso e invisibilizado em evidência. 

E se alguém tinha dúvida da importância da banda para a música brasileira, para além de grupos do Nordeste como os Raimundos e Chico Science & Nação Zumbi, chega aos cinemas dia 18 de outubro a biografia Legalize Já - Amizade Nunca Mais

Dirigido por Johnny Araújo (O Magnata) e Gustavo Bonafé (O Doutrinador), o filme vai um pouco na contramão das cinebiografias musicais típicas, que muitas vezes esbarram em sensacionalismo barato sobre como o artista em questão era louco ou excêntrico, com suas histórias de ascensão e decadência. 

Não é o caso da história contada aqui sobre Marcelo (Renato Goés, de Canastra Suja) e Skunk (Ícaro Silva, de Elis), mais focado no longo caminho para o sucesso, partindo de suas dificuldades - o primeiro, com um namorada grávida e um pai que não o quer mais em casa, o segundo, convivendo com o drama do vírus da AIDS - e passando pela germinação de um estilo único que consagrou um terreno pouco explorado no Brasil.

Filmado em fotografia dessaturada, que dá um tom de semi-preto e branco, o filme aproveita dessa opção estética que apela para um passado distante após décadas do cinema em cores para explorar o íntimo de seus personagens, como quando Marcelo se distrai da dura realidade escrevendo letras críticas à sociedade e Skunk mixa fitas cassete de hip hop para vender. O tanto que isso ocupa boa parte do filme mostra que a preocupação é outra: não só figuras importantes em determinado contexto, mas também as raízes de uma revolução artística. 

Muitas das vezes, criar aquilo para o artista pareceu fácil - bastou um momento de inspiração e pronto, já existe uma carreira de sucesso, difícil mesmo sendo aproveitar a fama apesar da personalidade complexa. Aqui é interessante ver cenas de Marcelo perdendo a vergonha do palco, de Skunk se apaixonando pelas letras de Marcelo, dos dois tentando coordenar a poesia de um com o ritmo de outro, os primeiros e constrangedores concertos, a vontade de tocar rock que leva a buscar uma banda, as referências motrizes como Dead Kennedys, Public Enemy e Fu Manchu…

Se há um defeito a ser apontado aqui talvez seja o tom de pregação de seus personagens, que trai um pouco o naturalismo de sua maior parte. Não a banda em si, com seu tom explicitamente político desde o início, mas o tanto que seus personagens discursam uns para os outros em conversas normais, em longos discursos contra o sistema opressor e a violência institucional. Para não dizer de Brennand, argentino dono do bar que sedia o primeiro estúdio do Planet Hemp, mostrado como uma figura benevolente, porém unidimensional, recebendo pouco espaço além disso e mais servindo para resoluções dramáticas entre os dois protagonistas que qualquer outra coisa.

Essas partes mais didáticas acabam se revelando um pouco desnecessárias, justamente porque o filme já consegue mostrar isso de maneira realista, como quando Skunk está passando mal na rua e toma uma dura de policiais sem razão aparente; ou quando as autoridades confiscam as posses de uma camelô idosa velha demais para conseguir emprego.

Justamente por isso que o fluxo de narrativa consegue seguir tão empolgante, pois a indignação política acaba surgindo como uma resposta natural à violência e hipocrisia da sociedade. A encenação, ainda que básica, acaba ganhando sentido através do uso do recurso da montagem paralela e como Skunk, cheio de ambição, influencia o abatido e algo apático Marcelo, mostrando ao jovem letrista que é possível sonhar ao mesmo tempo em que o vírus o abatia cada vez mais. 

A “Amizade Nunca Morre” do subtítulo pode até parecer que se trata de uma biografia chapa branca, mas assim que a carga de angústia adolescente contra o que os dois veem de errado na sociedade é instituída no filme vemos um filme sem medo de explorar uma dupla de protagonistas imperfeitos, com uma relação afetiva tão carinhosa e próxima quanto cheia de percalços e agressividade. Dos xingamentos na rua aos ensaios, o cerne dramático do filme soube demonstrar de forma bem sutil e bastante compreensível a formação de uma amizade.

Ainda que haja uma inconsistências entre essa cinebiografia e o relato escrito dos fatos em si, como as ocupações dos protagonistas e o dispositivo narrativo que Skunk tromba com Marcelo durante uma fuga da polícia e acaba pegando seu caderno por acidente - quando na verdade a amizade dos dois começou, segundo relatado, de forma mais tranquila e em uma cena posterior onde um comenta sobre a camisa de rock do outro. Também não foi retratado que Marcelo acompanhava Skunk no médico para tratamento do vírus HIV, o que no filme acaba virando segredo. Momentos que parecem mais adaptados e transformados para garantir maior dramaticidade ao filme.

Ainda assim, não é sempre que temos uma biografia menos burocrática e mais inventiva que o normal, bem como sobre uma banda surgida entre o período Collor e FHC e sua vontade desmedida de falar de mazelas sociais e botar o dedo na ferida, apontando fatos que ainda fazem sentido décadas depois. Lançado em outubro de 2018, mês das eleições presidenciais, surge como mais uma oportunidade de olhar o passado para conseguir entender o futuro, de entender como um assunto puxado na rua pode mudar os rumos da música nacional. E isso não é pouco.

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