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Críticas

Cineplayers

O poder do relato.

7,5
Na ativa desde 2008, quando escreveu e dirigiu o curta Pérolas, Gustavo Vinagre tem vindo em uma curva ascendente nos últimos anos de carreira, com curtas-metragens de ficção que chamam a atenção em festivais e internacionais. Em 2016, escalou a atriz trans e ex-colega de trabalho do Festival Mix Brasil Júlia Katharine em seu curta Os Cuidados que se tem com o Cuidado que os Outros Devem ter Consigo Mesmos (2016) e no sucessor Filme-Catástrofe (2017). E agora, a parceria rendeu o longa-metragem documental Lembro Mais dos Corvos, fruto não só da parceria entre os dois mas também do fascínio que Katharine exerce sobre o cineasta. 

Lembro Mais dos Corvos é de certa forma aparentado com o cinema de Eduardo Coutinho (As Canções, Jogo de Cena) porque de certa maneira o filme é menos sobre a história factual e se concentra mais na história subjetiva que Katharine nos conta, desde a traumática infância onde relata ter sido abusada por um parente, a autodescoberta como mulher trans e posteriormente diversos fatores de impacto como descoberta da paixão pelo cinema, as experiências de vida, afeto, sexo, trabalho, entre muitas histórias contadas ao longo de uma noite de insônia.

Para tornar a obra o mais íntima o possível, o documentário dispensa maiores artifícios de montagem (como imagens de arquivo e afins) e se concentra na relação entre diretor, câmera e atriz-personagem, que vai rememorando a vida e com isso impactando a própria estrutura que é narrada, pois enquanto fuma, troca de roupa, prende e solta os cabelos, também opina sobre o que deve entrar e o que deve ficar de fora, abandona e retorna a relatos à medida que lembra de detalhes. 

De maneira metalinguística, grande parte do filme também é sobre cinema: a paixão por Katharine Hepburn que serviu de inspiração para o segundo nome, os pequenos ritos ligados à cinema - como todo ano assistir Laços de Ternura com a mãe e vestir-se de gueixa e beber ajoelhada, o que a lembra dos filmes do japonês Yasujiro Ozu -, e até mesmo o próprio nome do filme, tirada de suas rememorações sobre Os Pássaros, de Alfred Hitchcock: relacionando o filme aos cuidados que confere um periquito (ou lovebird, em inglês), lembra do significado que carrega no filme do mestre do suspense, mas acaba apontando que a lembrança é mais forte nas sombrias cenas de corvos empoleirados e à espreita antes de atacar.

Essa salada de momentos se baseia menos em contar uma história com início, meio e fim e mais mostrar como a personagem vê a si mesma, as narrativas que carrega consigo, para onde pretende levar sua história (escrevendo roteiros românticos e alegres para sublimar as dores da existência) e como ela pode ser apresentada a nós: com uma frontalidade sincera, que diz onde se deve começar, até onde pode ir, quando deve terminar. Não se pretende recriar ou reconstituir algo aqui, mas na verdade valorizar as pausas, as fugas de olhares, a preparação e a espontaneidade dos pequenos atos. E sem evidência, apenas narrativa, o poder da catarse de uma história bem contada é mais sedutor que os fatos. Mais uma prova do cinema como movido por e limitado apenas por pela imaginação e memória de seus agentes envolvidos.

Comentários (1)

Vítor Miranda | quarta-feira, 13 de Março de 2019 - 19:46

pra ver antes/depois:

http://www.cineplayers.com/filme/portrait-of-jason/29685

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