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Críticas

Cineplayers

Filme ruim com alvará de alta cultura.

4,0
Lou Andreas-Salomé foi uma das mulheres mais importantes na virada do século 19 para 20. Nome importante da filosofia alemã e fundamental para os primórdios da psicanálise, a escritora acompanhou de perto uma efervescente revolução nas ciências humanas e nas artes através de figuras com quem manteve relações pessoais próximas como Friedrich Nietzsche, Rainer Maria Rilke e Sigmund Freud, além de interações com Liev Tolstói, Alexander Pushkin. Freud reconhecia seus escritos como importantes para fundamentar sua teoria psicanalítica e Nietzsche reconheceu inspirar-se nela para escrever Assim Falou Zaratustra.

E Lou (2016) é o filme que basicamente que se espera sobre os amores de Lou Andreas-Salomé, o suficiente para captar o tamanho da dimensão e influência da figura histórica. Dirigido por Cordula Kablitz-Post, conhecida até então por seus documentários televisivos, todos sobre figuras famosas como a cantora Nina Hagen e o cineasta e dramaturgo alemão Christoph Schlingensief. Em seu primeira filme de ficção, o retrato da intelectual revela-se como um novelão de mão pesada, sentimentalóide e no limite da caricatura. 

Contado através do recurso de flashback, onde uma envelhecida Lou Salomé conta suas memórias para o germanista Ernst Pfeiffer já no final de sua vida, onde era perseguida pelo regime nazista, que virava a opinião pública contra a intelectualidade e pregava a queima de livros considerados obscenos ou heréticos. E à medida que regredimos para avançar na vida Lou, descobrimos que é isso mesmo que ela perseguiu: transcender os papéis de gênero, não se dispôr às normas de sexualidade, sendo tão famosa quanto famigerada por ser uma mulher que fez a própria carreira e conseguiu destaque no cenário intelectual da Europa. 

Era onde o filme pode se focar, mas acaba sendo um ponto de menor interesse. Entram os amantes de Lou: um Nietzsche que faz muito mais o gênero de “louco apaixonado”, sufocado pela família do que qualquer outra coisa - nem de longe pode-se imaginar que trata-se de um intelectual revolucionário -, um Rainer Maria Rilke de olhos arregalados, abraçado em livros como um boneco e sempre em tom choroso na hora de declarar seu amor por Lou Salomé, e Freud, bem, sendo o Freud do estereótipo: o tipo professoral, pragmático e racional à beira da robotização.

O filme aprofunda o relacionamento da protagonista com as três figuras famosas, além de outras de menor expressão, como Paul Rée, que participava de um triângulo amoroso com Lou e Nietzsche e o linguista Friedrich Carl Andreas, casado com a filósofa por 40 anos em um relacionamento aberto. Conhecemos questões, como começaram as relações, como terminaram, as descobertas sexuais de Lou ao longo da vida.

Mas é um filme que acaba aí. Não se tem ideia do que Lou Salomé fez e o impacto que provocou até que um ou outro homem com o qual mantém relações reconheça o valor de suas ideias. Não se sabe sobre o que é o seu livro nem quais as áreas de especialização que inovou. O que temos, isso sim, é o estereótipo do “dramão pesado” europeu, que abusa de música erudita na trilha sonora, cenografia carregada e diálogos pomposos para passar uma impressão de sofisticação. Mas mesmo tentando desesperadamente dar carteirada de ser um filme sobre uma figura intelectual para pessoas cultas, a verdade é que, por mais impressionado consigo mesmo que seja, é um filme bem simplista.

O filme caminha em círculos com os homens que se apaixonam por Lou Andreas-Salomé e enlouquecem por causa de sua personalidade impetuosa. Deliram, bebem até cair, tentam suicídio, entram em depressão por não saberem aceitar a mentalidade à frente do tempo da protagonista que também acaba pagando o preço por seus costumes avançados. Já velha, doente e perseguida pelo nazismo, na figura de Ernst ela reconhece uma chance de reconectar com os homens fascinados por sua personalidade. Outros elementos, como a relação intelectual com Freud e os traumas recalcados da infância, acabam sendo jogados para escanteio, servindo mais como justificativa e menos como o assunto em si.

Ou seja, justamente o mais básico - e repetitivo - das cinebiografias que dominaram o mercado há não muito tempo e hoje ainda persistem com a fórmula clichê: o protagonista talentoso porém detestável que após muito pagar tanto por sua revolução social quanto por sua vida pessoal acaba encontrando uma redenção. Com um par de cenas risíveis (incluindo algumas que envolvem computação gráfica; é ver para crer) Lou é um Ray Charles filósofo, que por sua vez era um Johnny e Junne tocando piano, que por sua vez é um Alan Turing tocando guitarra, que por sua vez… Bem, faça a sua comparação. O molde das cinebiografias segue aí até hoje, inquebrável, fazendo com que todos os indivíduos pareçam exatamente os mesmos. No reino das produções a toque de caixa, qualquer revolução pode ser massificada e tornar-se o mesmo conservadorismo de hábito. Este é só mais um exemplo.

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