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Críticas

Cineplayers

Habitantes das torres de marfim.

6,5

Documentários abordando um determinado contexto do mosaico social brasileiro proliferam em nosso cinema, mas Um Lugar ao Sol (idem, 2009) opta por uma via inversa do que comumente se encontra nos trabalhos do gênero. Em vez de lidar com a miséria ou filmar a população pobre e humilde, como muitos agem acreditando na busca de entender uma realidade, que seria a pobreza e/ou a marginalidade, Gabriel Mascaro vai de encontro a uma elite de alto poder aquisitivo, todos moradores de coberturas de prédios em grandes cidades do país. Filmando onde a miséria está ausente, ela paradoxalmente é lembrada todo tempo, não como um discurso verbalizado do cineasta e seu filme, mas sim uma presença incômoda e distante, ameaçadora ou não, mas real e permanente em um mundo próximo e além do que é retratado pelas lentes de Um Lugar ao Sol.

Não que se devam evitar as filmagens em torno das condições precárias e marginalizadas do brasileiro (e bons ou excelentes filmes foram produzidos em torno desses temas), porém existe todo um costume tanto em documentários quanto em ficções com dramaturgias bem pobres filiado à necessidade de ir até uma região periférica, dialogar com uma classe desfavorecida, estabelecer uma denúncia, passar a mão na cabeça de todos, cumprir um papel social digno de importância e não raro demagógico, depois sair com o trabalho pronto e fazer carreira com o seu filme sem que necessariamente ocorra mudanças significativas em torno dos problemas apontados (o que talvez nem seja a função do cinema, diga-se). Enfim, toda uma tradição de brasilidade herdada há bom tempo, e que Um Lugar ao Sol contrapõe com uma visão de quem contempla as grandes cidades e o dia-a-dia de sua população à distância, lá do alto, como se não estivessem implicados nessa rotina do espetáculo humano das metrópoles (mais próximo de Deus e longe dos homens, como um dos depoimentos perto do final chega a sugerir).

Essa busca para dar um corpo e discurso a uma classe subentende sem esforço algum que é a condição privilegiada de uma minoria, e focando nela não há como não pensar no que está de fora, na massa dos excluídos. Deixar de encarar Um Lugar ao Sol dessa maneira seria correr o risco de reduzi-lo a um talk-show onde se expressasse apenas uma parte da realidade brasileira em torno de entrevistados de grande poderio econômico, o que o limitaria bastante. Muitos dos entrevistados no filme de Gabriel Mascaro falam de suas vidas particulares como se não existisse possibilidade de existência para eles próprios caso não usufruíssem da área e do grande espaço que só alguns poucos podem se dar ao luxo de possuir, nos topos das construções verticais dos edifícios que se dirigem aos céus. Uma moradora fala do morro que contempla de sua janela encarando-o como um brinquedo em miniatura, e menciona os tiroteios de lá dizendo que é quase o mesmo que assistir a um filme de bangue-bangue, enquanto que um casal de outra cobertura se refere ao barulho das balas disparadas na rua como fogos de artifício de cujos perigos se sentem invulneráveis.

Um dos primeiros entrevistados expõe o paralelo mais apropriado: cada cobertura é uma ilha, com toda paz, segurança e conforto que se poderia esperar delas. Nesse processo todo, a arquitetura das cidades sofre uma praga que vende a verticalização de elevados prédios como um modelo a ser sedimentado, e o sonho da cobertura como o desejo simbólico de todos em alcançar o topo. O que o documentário não deixa de expor é o profundo isolamento ao lançar um olhar sobre o espaço que separa as pessoas e os lugares (“onde eu vivo e onde eu moro não é a realidade do Brasil”, um dos entrevistados mais jovens afirma). Gabriel Mascaro não legitima denúncia alguma, tampouco seu filme é generoso com uma classe amplamente favorecida, tudo o que faz é instalar um desconforto ao longo de sua narrativa. O que vai pairando em Um Lugar ao Sol é uma presença muito maior e mais ampla de um fantasma, de um corpo disforme e sem rosto (como zumbis em um filme de terror) que seria a população de classe média baixa ou miserável do país. Concentrar um olhar nos favorecidos pelo capital e poderio econômico é somente uma nova forma (ainda que certamente não inédita) de estabelecer um comentário bastante pertinente sobre os excluídos e os que estão de fora das benesses dos jogos sociais, cuja representação mais forte sempre será a arquitetura de seus prédios e de suas imagens.

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