Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Recorte notável de uma das mais polêmicas figuras brasileiras dos anos 30.

8,0
No plano que abre Madame Satã, vemos João Francisco dos Santos, o personagem título (interpretado por um surpreendente Lázaro Ramos) em um interrogatório com o rosto machucado e a expressão de injúria. Fora de plano, o delegado lhe define, em meio a perguntas, como um preto pobre, pederasta, violento e de pouca inteligência. À partir daí, o roteiro de Karim Ainouz (Praia do Futuro), Marcelo Gomes (Cinema, Aspirinas e Urubus), Sérgio Machado (Cidade Baixa) e Mauricio Zacharias (Deixe a Luz Acesa) se isenta de dizer muita coisa, e se contenta em tecer seu recorte de um momento peculiar na vida do polêmico Madame Satã.

Notável, aliás, é a construção da figura de Madame Satã no Rio de Janeiro dos anos 30, período tão conservador, politizado e elitista como os de hoje. Madame Satã é gay, malandro, presidiário, uma “bicha histérica” com orgulho incomum, e igualmente sonhadora, amante da arte teatral, uma pessoa de sentimentos explosivos e muita vontade de viver. Cotidianamente, vive às sombras do espetáculo 1001 Noites, onde trabalha como figurinista, mas sempre está atrás das cortinas recitando silenciosamente os trechos do espetáculo. 

Madame Satã é turbulento em sua relação familiar com Laurita (Marcelia Cartaxo) e Tabu (Flávio Bauraqui), com quem convive entre tapas e beijos, brigas e sorrisos. Oscilando entre a instabilidade emocional e o real apego e preocupação com sua família de consideração, a personalidade deste personagem grita por si só, é contagiante, fascinante e hipnótica, o que já permite que o filme de Ainouz diga muito sobre a riqueza que até hoje cerca a história de João Francisco dos Santos.

E isto se revela um trabalho difícil, o que denota o êxito de Ainouz em seu primeiro longa metragem, tão completo quanto outros de seus títulos posteriores como O Céu de Suely ou O Abismo Prateado. O diretor não foge de uma narrativa caótica que exemplifica a turbulência que cercava a vida de Madame Satã, perseguido pela polícia, enganado por seu patrão, praticante de roubos de carteiras… e quando nos damos de conta de como estamos torcendo pelo sucesso e felicidade de um personagem tão moralmente questionável, temos a prova de que o trabalho de humanização se fez certo, e nisto todos nós nos sentimos um pouco Madame Satã.

Como propõe um recorte específico de um período da vida de Madame, não há exatamente um desfecho conclusivo para a história, o que os obriga a recorrer ao praticamente indispensável letreiro final, que resume o findar da vida de João Francisco dos Santos e até chegar à sua importância histórica e influência. Mas é de se admirar a eficácia com que Ainouz encontra o desconforto que marcava o cotidiano sufocante de Madame, seja através da textura cromática que inunda a fotografia de Walter Carvalho (Central do Brasil) ou a direção de arte expressiva de Marcos Pedroso, numa reconstituição intensa da Lapa dos anos 30. Madame Satã é tão lírico e marginal quanto seu personagem-título.

Não há lágrimas fáceis no filme de Ainouz, por mais que possa haver alguma evocação para isto em alguns pontos, mas Madame Satã é um exemplo de cinebiografia definitivamente interessada no nome que desenha na tela, uma personalidade apaixonada, verborrágica, caricatural, mas tão autêntica quanto a história lhe entende ser. 

Comentários (1)

Faça login para comentar.