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Críticas

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Adivinhe quem vem para jantar.

4,0
Num bizarro universo em que O Iluminado (The Shining, 1980) se cruza com O Bebê de Rosemary (Rosemary’s Baby, 1968) dentro de uma comédia surrealista de Luís Buñuel, nasce o novo filme do diretor Darren Aronofksy, Mãe! (Mother!, 2017). Em uma casa vitoriana isolada em um lugar inespecífico, um casal vive uma rotina bucólica em que a esposa se preocupa em restaurar o local que no passado passou por um violento incêndio, enquanto o marido se isola e procura inspiração para a escrita de seu novo poema. Há uma estranheza denotada na interação errante entre os dois, reforçada por um ambiente de portas fora do lugar, escombros, paredes descascadas, saletas ocultas, móveis parcialmente queimados. Ela possui uma misteriosa conexão física e sinergia com a estrutura daquela casa, enquanto ele parece preso ao passado anterior ao incêndio. Antes que esses pequenos detalhes estranhos comecem a ganhar espaço, uma visita inesperada se torna a prioridade da história. O marido não se incomoda em receber um perfeito estranho e convidá-lo para passar a noite, mas para a esposa dedicada que zela pela paz e pela construção de um reconfortante ambiente familiar e inspirador, aquela atitude e aquela nova presença são simplesmente inaceitáveis e não fazem o menor sentido. 

A partir desse princípio de pesadelo freudiano, Aronofsky desenrola seu infindável desfile de alegorias e, muito ambicioso, tenta acertar uma avalanche de temas distintos que de alguma forma se refletem na situação cada vez mais insustentável da casa. Como numa comédia surrealista, quanto mais a esposa procura se livrar de visitantes indesejados, mais eles aparecem aos montes e mais inconvenientes do que nunca. É um plot interessante e, até certo ponto, Aronofsky faz um bom uso dele, trabalhando bem o crescente de tensão na primeira meia hora. Mas o clima sufocante de isolamento logo se dissipa e a história vai tomando rumos tão absurdos que, em dado momento, nem mesmo o diretor sabe o que fazer. Há muitos ecos da famosa trilogia do apartamento, de Roman Polanski, e dela vêm também os inúmeros temas que o diretor francês abordou nos anos 1960/1970, como a opressão da sociedade sobre o indivíduo comum, a exploração da sexualidade da figura feminina, a formação familiar e o impacto de um filho no casamento, a vizinhança intrometida e de alguma forma invasiva e perigosa, a paranoia do isolamento etc. No entanto, não há a maestria e a elegância de um Polanski para dominar uma gama tão ampla de temas importantes. 

Por exemplo, o excesso de planos fechados jamais dá conta de explorar adequadamente os ambientes da casa, sendo o local praticamente um personagem conjunto à esposa. Quanto mais a casa é invadida e violada, mais a esposa se desestabiliza e enfraquece, tendo seus apelos de paz e tranquilidade negados ou ignorados pelo marido, que por sua vez parece vibrar com o horror da situação. A câmera de Aronofsky não obedece a essa lógica de correlacionar os personagens ao ambiente, ficando quase que o tempo todo fechada em closes no rosto de Jennifer Lawrence (numa atuação toda responsiva). Logo a conexão mulher/casa vai perdendo sua força, para só ser retomada no histérico e bagunçado ato final, quando o diretor se perde no carnaval que criou e simplesmente sai girando e cortando descontrolado em uma montagem frenética e grosseira. 

Mãe! trata, em primeiro plano, da exploração feminina em vários níveis. O diretor comentou em entrevistas sobre se tratar de uma alegoria sobre a Mãe Natureza e como o homem se aproveita dela sem oferecer nenhum retorno. Não há qualquer indício literal dessa leitura ao longo do filme (ainda que seja possível enxergar o que bem entender no meio de tanta bagunça), porém há a questão da misoginia em voga – seja a personagem de Jennifer Lawrence sendo explorada enquanto mãe, enquanto esposa, enquanto anfitriã, enquanto dona de casa, enquanto mulher. Como parte indissociável da casa (inclusive não há cena alguma dela fora de lá), ela é também a estrutura física e moral que sustenta e que se deteriora com tudo o que ocorre. Ela só está ali para servir aos propósitos do marido, um artista em crise que precisa de paz e inspiração para criar, mas ao mesmo tempo precisa que seu ego seja massageado pelo sem-número de fãs/invasores/interesseiros. Conforme o filme se distancia dessa situação, logo fica claro que tudo se trata da mera utilização da mulher dentro dos propósitos profissionais e pessoais masculinos. Do outro lado, se desenha aos poucos uma sucessão de acontecimentos que remetem às histórias bíblicas cheias de furor, fantasia e sangue que extravasam a veia agnóstica e questionadora que o diretor havia já pincelado em seu filme anterior, até culminar num simbólico armagedom particular.

A ambição de Aronofsky é aliar o cinema de arte ao cinema de apelo comercial, injetar criatividade num cenário de mesmice. Proposta válida e nobre, mas que fica só na intenção quando tudo não passa de malabarismos técnicos vazios e tentativas de se aprofundar em inúmeras alegorias e assim poder se vender como complexo, como se a mera menção a um sem-número de temas e assuntos relevantes fosse o suficiente para fazer o tal do cinema politizado, “de arte”. A narrativa de rupturas, cheia de lacunas, a princípio parece oferecer algo mais cerebral e inteligente, mas logo se trai em desfechos redondinhos, conclusões mastigadas, a fim de satisfazer aquela parcela do público que não tolera pontas soltas e só sai feliz quando sente que conseguiu desvendar cada detalhe. É como se ele tivesse a ambição e mesmo a capacidade de ir além, de realmente se arriscar, mas ao mesmo tempo se visse preso às expectativas comerciais que seu nome gera a cada novo lançamento. A sequência final deixa tudo isso bem claro: por mais que haja aqui e ali alguns momentos de pura tensão e graça, Mãe! se encerra encaixando a peça restante do quebra-cabeça, inteligível o suficiente e traindo toda a loucura, todo o sangue, todo o onirismo, todas as ousadias tentadas em seu decorrer. 

Comentários (38)

Thiago Fernando Fasolo Bones | domingo, 03 de Março de 2019 - 18:24

Eu tava aqui lendo todos os comentários, achando graça em alguns, mas só pra dizer que Mãe é desagradável no estilo e no conteúdo, um desperdício de bons atores, e que parece mentira que o único filme do Aronofsky que eu realmente recomendaria pra alguém é um filme estrelado pelo Mickey Rourke.

Ted Rafael Araujo Nogueira | segunda-feira, 04 de Março de 2019 - 01:46

Eu acho a caralhada de Mãe extremamente divertida. Tem a putaria da mãe natureza pra alguns, o poder feminino pra outros - ou a falta dele - e ao fim diverte. A histeria é pra chamar atenção. Uma mise en scene esculhambatória e avacalhada. Funciona. Sem sutilezas. A grosseria do ególatra.

Walter Prado | segunda-feira, 04 de Março de 2019 - 18:43

Eu detesto este aqui.

João Pedro Duarte | terça-feira, 14 de Janeiro de 2020 - 16:25

Esta é uma das melhores críticas que li no site. Parabéns, Heitor!

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