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Críticas

Cineplayers

Aronofsky no paraíso do risco.

7,5
O fogo serve para expurgar, de acordo com muitas religiões e crenças. Expelir dor, sentimentos ruins, fatos desagradáveis, sofrimentos, grandes tragédias: o fogo conserta tudo, e coloca tudo num contexto de fim de um tempo, para o início de outro. Há muito fogo e referências a derivados em mãe!, o filme novo de Darren Aronofsky, tais como brasas, cinzas, queimaduras. Um dos tantos símbolos e metáforas do longa, o fogo abre o filme num plano de horror puro. Após ele, a beleza da calmaria, do despertar de um pesadelo e de se perceber que tudo não passava de um. Ao sair da sessão de um filme como esse, a certeza das perguntas é muito mais concreta do que a percepção das respostas, que não vem fáceis. Mas não se enganem, Aronofsky não está brincando, mas apenas simplificando o que talvez fosse melhor deixar complexo. No entanto, dá gosto de ver um cineasta ser deixado livre por um grande estúdio para criar o que quiser e poder exacerbar suas obsessões.

Por falar em obsessões, Aronofsky foi fiel a seu tema-chave e volta a filmar os obsessivos e seus pontos de contato com o exterior e seu redor. Dessa vez não apenas os filma como também claramente aponta os dedos em sua direção como se a acusá-los, o que trás um toque de contemporaneidade a um filme que se desenha alheio ao tempo e ao espaço. A obsessão da vez tem ligação direta com temas sociais da atualidade, e Aronofsky emprega tanta clareza em sua crítica que talvez isso justifique uma parte do ódio que vem sendo direcionado a ele. Ainda que Noé tenha detratores, ainda que Cisne Negro não seja uma unanimidade mais, ainda que Réquiem para um Sonho seja um filme bastante criticado, há muito tempo não via um diretor de grande porte apanhar tanto. Mas a verdade é que seu novo filme não faz concessões a quem não embarcar em seus delírios (de grandeza?) e em sua proposta de risco; não há como comprar briga com quem não gostar de mãe!, consigo enxergar no filme todos os alvos aparentes: megalomania, pretensão, uma certa arrogância, tá tudo lá, é um pacote. 

Isso não quer dizer que Aronofsky acerte em todas as miras. Observo a coragem de sair da casinha e expor algo tão visceral, saúdo a chegada de um filme de grande porte escolher tão deliberadamente uma posição de enfrentamento com as vias ditas comerciais; esse risco é bem-vindo. Mas é exatamente aí que falta justificar-se em repetição de planos, que não dá pra entender personagens que somem, ou que aponte para seu desfecho com tantas auto-explicações (todas atribuídas ao coitado do Javier Bardem). O filme tem uma atmosfera que se abre para o risco, inclusive abraçando características negativas, como possíveis retratos fiéis demais de machismo e misoginia, mas acho que seu desfecho tenta limpar uma visão mais que nociva das relações homens e mulheres, que o filme pinta como infernal. Ao passo de absorver uma certa repugnância excessiva vinda dos personagens para com relação à Jennifer Lawrence, o filme não estaria mais do que retratando isso, mas se aliando a essa vertente? 

No elenco vemos vigor. Se Ed Harris apenas empresta sua aura a um personagem tão conhecido e que aqui está bem longe das tentações que representou, Michelle Pfeiffer desfila charme e ousadia com uma espécie de falta de paciência, uma urgência de nariz arrebitado, que só adiciona verniz a essa outra figura que nunca foi associada a essas características. Javier Bardem vende ambiguidade com esse personagem cujas últimas camadas só serão descortinadas ao fim da jornada, e embora ele seja responsável por diálogos expositivos, ele é um monstro da atuação que acaba ficando livre desse escorregão do roteiro. Mas Jennifer Lawrence manda e desmanda em mãe!, e tem aqui seu desempenho mais especial desde Inverno da Alma. Uma mulher que não se conhece e não sabe do tamanho de sua personalidade, mas que tateia no escuro entre a doçura e a incredulidade durante boa parte da projeção. Jennifer é a pujança do filme; Aronofsky filma seus closes de maneira implacável e a coloca com uma subjetiva, o que faz com que tudo absolutamente no filme seja sobre ela. É com domínio pleno de sua arte, ela se entrega como talvez nunca o tivesse feito. 

Tecnicamente impecável, o filme é construído como um pesadelo sujo e gratuito. Viciado em planos-sequência num nível que lá pelas tantas eles passam a nem serem percebidos mais, Aronofsky é puro excesso em cena, e eu não sei dizer se isso é necessariamente bom ou ruim. Para contar essa narrativa da maneira mais crível possível, parece primordial que as amarras fossem sendo soltas, até que no segundo ato uma espécie de rolo compressor de eventos é acionado no filme e transforma os pesadelos de Lawrence em pesadelos reais do espectador, com sua sujeira inerente e seu tom de escárnio cada vez mais forte e mesmo estridente, que obviamente irá desagradar a tantos. Um filme ligeiramente podado seria muito mais eficaz em sua mensagem final, impactante mas explícita demais. O filme gigantesco que Aronofsky pensou era possível, assim como a certeza de que geralmente "menos é mais". Nos estertores do todo, conseguimos ouvir os gritos e ver as labaredas a retomar o centro do quadro, como se todos os signos dele ultrapassassem os limites de suas representações literárias e míticas e chegassem até o público, que obviamente rejeita um momento tão apoteótico em todos os sentidos, mas cuja força imagética e interpretativa resiste e sobrevive.

Comentários (1)

Antonio Montana | quarta-feira, 13 de Dezembro de 2017 - 16:15

Ótima crítica. Carbone captou a mensagem do filme e conseguiu escrever de maneira coerente sobre isso!!

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