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Críticas

Cineplayers

Uma inspirada obra sobre a ascensão ao estrelato e os bastidores do show business.

9,0

Embora o universo em que se passa a trama seja o teatro da Broadway, A Malvada é um filme altamente metalinguístico, uma obra do cinema sobre o próprio mundo do espetáculo.  Propondo um olhar sarcástico sobre o que compõe a mítica da sétima arte e a aura das estrelas, a ironia já está presente no primeiro plano da projeção: um enquadramento fechado, contendo a imagem de um troféu de premiação somente. Entra narração em off, com o personagem que é crítico de teatro,  contando para nós, espectadores, quem é quem entre os figurões do showbizz, enquanto a câmera passeia livremente pelo salão da premiação. Uma fina ironia, de muita audácia e perspicácia, que percorre o filme do início ao fim, e que faz de A Malvada um memorável clássico do cinema.

Num dos grandes papéis de sua carreira, Bette Davis interpreta uma fictícia diva da Broadway, Margo Channing, em momento de transição de sua carreira, onde a idade de 40 anos já é um fardo que prejudica sua imagem junto ao público e a escalação para papéis de destaque. Eis que conhece sua suposta maior fã, a jovem e pobre moça Eve Harrington (Anne Baxter), que contando uma apelativa e sofrida história sobre sua vida supostamente verdadeira, cai nas graças de Channing, tornando-se sua protegida. A partir daí, Eve, a personagem que dá nome ao filme no título original, doentiamente sedenta por tomar o lugar de sua admirada diva, faz sua escalada rumo a glória e ao sucesso por meio de muitas mentiras, jogadas sórdidas, dissimulação e atuação – uma atriz nata.

Escrito e dirigido por Joseph Mankiewicz, A Malvada é um deleite tanto como cinema, mas também por sua grande teatralidade. Simplesmente todos os diálogos são pérolas, impagáveis, de tão bem construídos e bem articulados. O roteiro é engenhoso, começa no final da trama, e por meio de um flashback, proporciona uma dinâmica a saga de Eve que jamais se obteria com uma narrativa linear. O cinema de Mankiewicz é muito marcado pela teatralidade, sempre escalando grandes atores, em filmes ambientados predominantemente em ambientes internos (cenários de estúdio) e com o conflito todo baseado no diálogo. Tal como seu irmão Herman Mankiewicz ao elaborar o roteiro de Cidadão Kane, Joseph trabalha aqui com a pluralidade de visões com que uma história pode ser contada – temos aqui a mesma trama sendo narrada pelos olhos de Addison DeWitt (George Sanders), o crítico de teatro, assim como por Karen Richards (Celeste Holm), a esposa do roteirista. E também por optar pela não-linearidade dos fatos para apresentar uma narrativa.

Uma vez que A Malvada é um filme sobre os bastidores do mundo do entretenimento, é curioso notar como a história apresentada se confunde bastante com a realidade. Bette Davis vivia na época uma situação semelhante com a de sua personagem, pois apesar de seu início bastante glorioso e premiado no cinema (já em 1935 ganhara o Oscar por Perigosa, seguido por outro Oscar por Jezebel, em 1938), vinha de diversas atuações inexpressivas em filmes fracos. Neste filme, sua carreira ganhou novo vigor, numa produção que conseguiu abocanhar impressionantes 4 indicações ao Oscar só para o elenco de atrizes: além dela, Anne Baxter, Celeste Holm e Thelma Ritter foram indicadas. Em meio a tanto ego, não era de se imaginar algo diferente: as filmagens foram turbulentas, por culpa de problemas de relacionamento entre todo o elenco (justamente como acontece entre as personagens do filme). Bette Davis possuía um talento nato para situações de atrito entre mulheres dentro e fora da tela: convém lembrar a lendária rixa que houve entre ela e Joan Crawford em O Que Terá Acontecido a Baby Jane? (1962).

Outra curiosidade é que Bette Davis vive no filme um par romântico com o diretor de teatro Bill Sampson, interpretado por Gary Merril, por quem na vida real se apaixonaria e se casaria logo após o fim das filmagens. Sem contar com o paralelo que se pode estabelecer entre a saga de Eve e a de uma jovem e pouco conhecida atriz que faria uma pequena ponta neste filme: Marilyn Monroe. Muitas das artimanhas utilizadas por Eve para chegar a fama, entre elas trocar de nome e seduzir homens importantes, fazem parte do imaginário mítico que envolve a atriz.  O sugestivo nome da personagem de Eve, “Eva”, evoca o papel da mulher do livro bíblico Gênesis, onde é a responsável pela cobiça e traição e habilidades em manipulação. Ainda que a jornada de Eve em A Malvada remeta ao arquétipo da personagem jovem e de origem pobre que faz de tudo para ter sua inclusão na nobreza, nem que para isso seja necessário corromper-se moralmente, que alimenta a literatura há séculos, e é vastamente utilizado ao longo do cinema em ambos os gêneros, indo de Trama Diabólica (1972), do próprio Mankiewicz, a Barry Lyndon (1975), de Stanley Kubrick.

Com a marca impressionante de 14 indicações ao Oscar, A Malvada foi ganhador de seis: filme, direção, roteiro, ator coadjuvante (George Sanders), figurino e som. Curiosamente, tirou a estatueta de um dos melhores filmes de todos os tempos, Crepúsculo dos Deuses, justamente um filme que, com temática semelhante, aborda de forma irônica e metalinguística os bastidores da indústria do cinema, igualmente com uma protagonista que sente o peso da idade frente a paranóia com o mito da juventude e a obsessão por idade, tão presente na mídia e na sociedade do espetáculo – ainda hoje.  São filmes como estes, cada vez mais raros, porém cada vez mais atuais, que nos lembram como o mundo do entretenimento e o cinema são puramente técnicas de ilusão, e até mesmo da mentira, assim como certa vez disse Brian de Palma: a câmera de cinema mente 24 vezes por segundo. A arte está em fazer piada disso.

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