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Críticas

Cineplayers

Obra-prima que dá margem a infindáveis (e positivas) discussões sobre o ser humano.

9,0

A primeira cena de Marcas da Violência é chocante: dois homens matam friamente funcionários em um hotelzinho de beira de estrada (mais tarde saberemos que são assaltantes). Aparentemente não é uma situação muito original. É tão freqüente assistirmos assassinatos no cinema que, às vezes, pode-se dizer que eles perdem a “gravidade”, o significado. Mas, o que o diretor David Cronenberg faz nessa seqüência é torná-la um documento atroz do que esse ato encerra. O modo displicente com que os bandidos encaram a morte do outro é salientado pela direção que esconde, num primeiro momento do que se tratava a atividade deles, exibindo a costumeira trivialidade com que eles encaravam a “tarefa” em uma cena que, de início, parece mostrar uma ação não mais que corriqueira e banal. Porém, quando um deles volta ao hotel para encher o galão de água é que vemos a chacina promovida. Para coroar essa abertura poderosa, a seqüência se encerra com o assassinato de uma criança, ressaltando mais uma vez a indiferença com que eles matavam. Repito: eles matavam. A partir daí, sabiamente Cronenberg embute no espectador questionamentos sobre a natureza do ato de matar. O que os levou a tamanha indiferença quanto à barbárie? Esse desvio é inerente, nasceu com eles? Se é natural, eu também posso tê-lo em mim? Há perdão? Há como mudar? Esses questionamentos servirão de referência para outros ainda mais profundos jogados no decorrer da história.

Depois dessa abertura, o filme volta-se para Tom Stall (Viggo Mortensen), um cidadão pacato e cordial do interior dos Estados Unidos e bom pai de família. Sua vida equilibrada é revirada quando dois assaltantes (os mesmos do início) tentam assaltar o seu bar e, surpreendentemente são mortos por ele, que numa reação rápida e explosiva reage violentamente. Visto como herói após o incidente, Tom ganha fama instantânea, o que faz com que sujeitos estranhos comecem a importunar a ele e a sua família dizendo conhecê-lo. É aí que aparecem as primeiras dúvidas sobre quem é Tom Stall (ou Joey, como é chamado pelos sujeitos). 

Genericamente, pode-se dizer que Marcas da Violência é uma obra que trata de questões complexas sobre a identidade humana, como está é definida (ou criada) e até sobre o conceito do que seja humanidade. É um filme denso, ágil, sem meias palavras e fiel a todo momento a essas questões. Sua estrutura convencional mostra que o poder de um filme reside mais na força de seus propósitos que em eventuais mexidas no andamento. Cronenberg o realiza com destreza e precisão, deixando os exageros restritos às cenas de violência ( por sinal bastante chocantes e naturalistas ). A trilha sonora de Howard Shore lembra às vezes os acordes usados em O Senhor dos Anéis, mas não destoa. Enfim, a realização é muito competente, com ótimas atuações, blá-blá-blá. Mas o “a mais” do filme reside na discussão que ele coloca. E para falar mais sobre isso é impossível não revelar segredos da história. Portanto, quem ainda não assistiu, por favor, encerre aqui a leitura.

Em certo momento, tem-se a confirmação de que Tom Sall é na verdade Joey Cusack, um membro da máfia que, no passado, como ele mesmo confirma, matava por dinheiro e diversão. O choque entre o homem aparentemente correto do presente e o facínora do passado bem como seus desdobramentos acerca do que constrói (ou desconstrói) uma moral são o núcleo do filme. Sem a pretensão de oferecer quaisquer respostas, Marcas da Violência é uma grande interrogação. Pode alguém redimir-se após semelhantes atrocidades? Quanto de Joey ainda sobrevive em Tom? Qual é a sua identidade? Cronenberg deixa mais nebulosas essas elucubrações em passagens que tornam Tom ainda mais “instável” (como na cena de sexo com a esposa numa escada, em que ele demonstra certa violência ausente em outra cena de sexo anterior) e ao mostrar que o germe da violência é intrínseco a todos, podendo ser manifestado em situações-limite (vide a reação do filho nerd de Tom ao ser excessivamente provocado por colegas da escola). Sem contar que não sabemos o real motivo de Tom ter abandonado a máfia: foi por arrependimento ou ele estava fugindo? 

Dando margem para infindáveis discussões, Marcas da Violência é, no fundo, uma tentativa de pensar-se a identidade humana. Estamos a todo tempo lutando contra a nossa natureza que é refreada pelo raciocínio, pela consciência ou seja lá que nome se dê. É esse freio moral que nos diferencia dos outros animais e produz a nossa sociabilidade. Pode o ato de matar ou qualquer outro tão contrário à sociabilidade, nos tirar uma porção de nossa humanidade? Ou será que é exatamente esse conflito entre natureza e razão que nos define, não importando que lado vença?

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