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Críticas

Cineplayers

A autoconsciência e o endereçamento.

7,0
É extremamente difícil, de certo modo fútil, e até mesmo pouco recomendável que se tente encontrar uma espinha dorsal, um conjunto de regras e operações, os traços fulgurantes e típicos – a apelidação que se preferir – a um movimento dentro de alguma categoria artística. E não por conta dos pressupostos subjetivos: na Biologia ou na História, restringir as coisas a modus operandi específicos, é, ainda assim, escorregadio. A natureza, assim como as narrativas, é cheia de vazamentos, escapes, furos. Dizer: ''isto foi a revolução francesa'', assim como dizer: ''eis as prescrições para o cinema clássico''; ou ainda: ''foi assim que pensaram os críticos da geração francesa dos anos 60'', por maiores as convenções que se tenham criado para tal época, movimento ou estilo, sempre se decorrerá num deslize por engessamento. Ou até mesmo pelo riso que os participantes de um tal movimento, por exemplo, disparam. Centenas de escritores não se reconhecem como ''modernos'', categoria a eles imposta. Os japoneses da nova onda do país não se viam como parte integrante de um movimento. A História do Brasil que vemos nos livros é absurdamente tendenciosa (história de quem?), e por aí seguem as monstruosidades da rigidez que a história das coisas insiste em criar.

E, ainda assim, Martírio (2016) nos relembra que o documentário, com todos os riscos desta assertiva tomados, sempre possuirá um argumento. Sua estrutura sempre criará um discurso sobre alguma coisa, dirão os manuais e teorias. Mas sempre mesmo? É bem possível que sim, que estejamos diante de uma exceção a todo o exposto acima. Mas é que a questão principal ao gênero documentário não é sobre a existência ou não de um argumento. Ainda naqueles primeiros proto-documentários, cuja duração se resolvia em filmar um hábito de alguma população exótica, por exemplo, ainda assim podíamos discuti-los por uma gama de vieses: o etnocentrismo, a recriação destes mesmos hábitos, o próprio recorte do quadro, a narração didática e advinda ''de cima'', etc. Qual, então, a problemática? Ela parece ser, e Martírio vem inflamá-la como só o documentário brasileiro sabe provocar, uma de estrutura, de composição disso que se quer dizer, ou mesmo querer que se pense; suscitar, enfim. Curioso que digam que ele é um filme importante, imprescindível para o Brasil, quando na verdade a questão que ele suscita é que o é. O filme em si não tem valor algum – não se tenta, aqui, de maneira alguma, depreciar o cinema –, e se ele for estudado e repaginado nas academias, cineclubes e mostras, é somente porque o lugar do índio na história do nosso país é visivelmente problemático, não simplesmente porque a obra existe. A exigência é externa. Por isso se diz que é que na sua estrutura e articulação que está seu segredo e possíveis problemas. Entendida a diferenciação que os apelidos produzem, podemos chegar ao filme em si.

''Nós só queremos PAZ'', brada Kátia Abreu em reunião do congresso, e o corte para o título da obra recebe vez na tela. Minutos antes, abatidos, exaustos de espírito (uma emanação que só o cinema pode conter e desvelar), indígenas narravam as trajetórias e passagens de seus pais e avôs para conquistar e reconquistar terras; disputar, enterrar entes, proteger os mais novos, vê-los morrer. O suplício de um sem-número de gerações na simples devoção a um pedaço de terra que acreditam ser sua – sem mais demandas. E o atravessamento, desde a chegada dos primeiros colonizadores, de uma política que não é sua, um sistema que não é seu, uma imposição de pensamento e forma de vida contra a qual até hoje resistem. Como se sofressem por uma dupla nacionalidade: uma anterior à qualquer nomeação de séculos passados a esta terra, quando Brasil ainda não era sequer Brasil, e uma outra, decorrente de centenas de atos, proclamações, abusos, ultrapassagens voluntárias, desprezos, confusões. A pergunta que Carelli parece se fazer o tempo inteiro não é tanto ''qual o lugar do índio na sociedade brasileira atual?'' quanto ''por que, diante de um histórico abismal de injustiças, ele continua a ser neglicenciado e permanece às margens das margens?''. E onde reside, afinal, a grandiosidade de Martírio? Em ser um épico documentário (uma investigação secular e que se alimenta de outras grandezas e disciplinas para se estruturar, enfim, em um filme) ou um documentário épico (uma estrutura fílmica e discursiva cuja temática é, por si só, épica: a da das indas e vindas e de um heroísmo que consiste em puramente, até hoje, ter sobrevivido)? Decerto uma dose considerável dos dois.

Foi mencionada a imagem que precede a cartela com título do filme como exemplo do jogo discursivo engendrado por Carelli, mas ela é só uma dentre os vários enunciados, ironias e atestados que a montagem provoca, numa estrutura que segue de uma retomada de um trabalho de décadas atrás até discussões recentes, novos personagens e situações, perpassando só em pinceladas pontuais, ainda que muito bem costuradas, algumas das principais reviravoltas na questão entre a população indígena e a terra. A passagem da duração do filme em termos de solidificação de um argumento só tem o efeito de intensificar sua própria dialética nos moldes dos adereços documentais: há fotos de séculos passados, filmagens de embates entre latifundiários e índios, imagens de arquivo de debates políticos calorosos, de reportagens televisivas com claros efeitos de domesticação e branqueamento indígena, fotografias de documentos, narrações em off destes documentos mesmos – uma infinidade plural de mecanismos. Só que essa mesma tentativa de tornar a questão robusta e virulenta é também o que proporciona a aparição de certos exageros da parte de Carelli e Ernesto. 

Galgada a travessia de um rio de águas perigosas para atingir, na outra margem, uma tribo de barracas improvisadas cujo afastamento da terra originária tinha causado mortes dolorosas, o documentarista e seu ajudante repentinamente se exibem. Passam de trás das câmeras para o campo e discursam calorosamente sobre a importância do filme a que nós assistimos. Admitem não só que são eles aqueles que direcionam as imagens e as fabricam, mas reconhecem, também, sabe-se lá se por acidente ou euforia passional (importa puramente que há uma consequência), que aquelas imagens têm poder, que mobilizam e dão poder – um poder de uma outra qualidade, o de se afetar e saber – à população brasileira. Ora, o que poderia justificar a atitude excessiva senão o próprio tom por vezes didático assumido por Martírio? A atitude reiterativa acaba por inchar o filme com círculos argumentativos cansativos. Não é que de uma hora a outra o espectador de fato sinta que a questão indígena é problemática e sinuosa: ele provavelmente já o sabe antes mesmo de assistir ao filme. É mais um cansaço pelo peso dessas imagens e da própria estrutura densa e ramificada da questão de que elas tratam. É como se Carelli reiterasse incessantemente um sofrimento e uma importância que já estariam impregnados com algumas imagens menos. Se há tanta confiança no poderio e na urgência da situação que ele reclamou para si há décadas, por que repetir seu enunciado tantas vezes?

Há uma espécie de ultrapassagem desnecessária da passionalidade que poderia ter se dado de outras formas. Herzog expressa seu afeto pelo mundo e suas excentricidades tomando todo o cuidado possível com seus objetos: não cruza o limite deles, não os vitimiza em excesso, reconhece suas peculiaridades e dubiedades. Os índios de Carelli, ao contrário, às vezes soam como os mais inferiores dos seres, não pela incapacidade de se protegerem ou pela discrepância das forças com que lutam, mas por serem representados sem parar como mártires, curiosamente como já dita o título do próprio filme. Deles acabamos não sabendo mais do que alguns breves ''fatos'': possuem uma relação forte com a terra, cuja permanência lhes é negada há séculos, e a sua espiritualidade e visão de mundo não cabe nos moldes do homem branco. Não há nuances, não parecem haver mais que dois lados (mas a questão não era, afinal, densa?); em diversos momentos, não há sequer liberdade para deixar que as imagens falem sozinhas. Nas cenas finais, em que os índios finalmente se apossam do dispositivo da câmera para filmar a segurança privada contratada para evacuá-los e matá-los, e finalmente nós parecemos ter acesso a uma preciosidade de registro mais autoral, mais assertiva e enfática do que qualquer outra imagem que o filme viesse a significar, Carelli retoma a fala e nos confessa que teve de ''conter a emoção para segurar a câmera'', ou que precisou ''parar o carro para chorar'' copiosamente. E aí toda a força do discurso ameaça se tornar bamba: porque sobre Martírio, se quisermos realmente averiguar sua pungência, também é preciso desviar os olhos do documentário e voltá-los para o documentarista.

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